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Informação e virada cibernética (Garcia dos Santos 2003)

Informação e virada cibernética (Garcia dos Santos 2003)

GARCIA DOS SANTOS, Laymert. 2003. A informação após a virada cibernética. In: Laymert Garcia dos Santos; Maria R. Kehl; Bernardo Kucinski; Walter Pinheiro. Revolução tecnológica, internet e socialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, pp.9-33.

UMA REVOLUÇÃO PARA ALÉM DO SOCIALISMO

Gostaria de começar […] chamando a atenção […] para o título que foi dado […] à minha intervenção – “Perspectivas que a revolução microeletrônica e a internet abrem à luta pelo socialismo”. Nele há duas palavras que sempre, ou quase sempre, andaram juntas: socialismo e revolução. Mas aqui, […] revolução e socialismo não pertencessem à mesma esfera de significações, como se estas palavras […] referenciassem planos diversos de realidade […]: como se o pensamento político de esquerda precisasse elaborar e discutir uma revolução que teria ocorrido fora do seu âmbito de ação e reflexão. (Garcia dos Santos 2003:9)

DA VIRADA CULTURAL à VIRADA CIBERNÉTICA

Desde a década de 1970, […] tem se firmado a tese segundo a qual o capitalismo estaria se transfigurando ao incorporar a dimensão da cultura ao processo de produção e até mesmo ao fazer dela o motor da acumulação. […] Frederic Jameson denominou “a virada cultural” […] a transformação geral da própria cultura com a reestruturação social do capitalismo tardio enquanto sistema. […] A discussão sobre a virada cultural operada pelo capitalismo contemporâneo é muito instigante. Tendo porém a achar que ela tem um alcance limitado por não considerar a centralidade das tecnologias da informação no processo em curso – mesmo conferindo importância a essas tecnologias, o pensamento sobre a virada cultural vê o papel destas como apenas um dos fatores da transformação. Minha hipótese, portanto, é que para perceber o mundo que está sendo construído não basta compreender a plena incorporação da cultura ao sistema de mercado. Mais importante do que a transformação desta em mercadoria parece ser a “virada cibernética”, que selou a aliança entre o capital e a ciência e a tecnologia, e conferiu à tecnociência a função de motor de uma acumulação que vai tomar todo o mundo existente como matéria-prima à disposição do trabalho tecnocientífico. (Garcia dos Santos 2003:10-1)

INFORMAÇÃO COMO MENSAGEM

Quando ouvimos a expressão “tecnologias da informação”, costumamos pensar nas máquinas e nos meios que processam as mensagens produzidas pelos homens, veiculando um conteúdo imaterial – textos, imagens e sons. Nesse caso, a informação é então entendida em seu sentido jornalístico, como esse dado da realidade que, uma vez trabalhado pela linguagem humana, se torna o componente das mensagens capaz de estruturar a comunicação entre emissor e receptor, e manifestar a originalidade da troca simbólica que se estabelece. Mais ainda: quando se fala em tecnologias da informação, costumamos pensar na mídia, isto é, no sistema de produção industrial de informações. (Garcia dos Santos 2003:11)

A MÍDIA E DEMOCRACIA SÃO APENAS PARTES DA VIRADA CIBERNÉTICA (que também envolve o mundo como problema de codificação tecnocientífica)

Entretanto é preciso deixar claro que a mídia, tal como existe hoje, é apenas um segmento, ainda que relevante, da virada cibernética; esta implica muito mais do que o simples uso dos meios eletrônicos para transmitir informações. Hoje não se pode mais pensar a questão dos meios eletrônicos segundo os mesmos parâmetros de outrora – as concepções que viam os meios como o quarto Poder, como dispositivos passíveis de democratização da cultura, como porta-vozes da opinião pública, como veículos que podem contribuir para o aperfeiçoamento democrático. Estas concepções precisam ser reconsideradas dentro do campo maior que é definido pelo alcance e pela abrangência da noção tecnocientífica de informação. Do mesmo modo, discussões como a democratização da informática e da internet não podem se limitar à exaltação ou à crítica dos novos meios. Isso porque as tecnologias da informação extrapolam imensamente o campo de atuação da mídia e das novas mídias, pois operam – em todos os campos – a codificação e a digitalização do mundo ao manipularem a realidade informacional que permeia a matéria inerte, o ser vivo e o objeto técnico. (Garcia dos Santos 2003:11-2)

VIRADA CIBERNÉTICA e REVOLUÇÃO NEWTONIANA (informação como linguagem comum)

A elaboração de uma linguagem comum para além das especificidades dos diversos ramos do conhecimento científico e a instituição de uma nova síntese, só comparável à revolução newtoniana, indicavam que a teoria da informação parecia assumir um papel central no pensamento humano contemporâneo. Tal centralidade se devia ao fato de o conceito de informação ser válido nos campos da física, da biologia e da tecnologia. (Garcia dos Santos 2003:12-3)

SIMONDON e a INFORMAÇÃO

Seria preciso definir uma noção que fosse válida para pensar a individuação na natureza física tanto quanto na natureza viva, e em seguida para definir a diferenciação interna do ser vivo que prolonga sua individuação separando as funções vitais em fisiológicas e psíquicas. Ora, se retomamos o paradigma da tomada de forma tecnológica, encontramos uma noção que parece poder passar de uma ordem de realidade a outra, em razão de seu caráter puramente operatório, não vinculado a esta ou àquela matéria, e definindo-se unicamente em relação a um regime energético e estrutural: a noção de informação. [SIMONDON, Gilbert. L’individu et sa génèse physico- biologique. Epiméthée, Paris, Presses Universitaires de France, 1964, p. 250.] (Garcia dos Santos 2003:13)

LAYMERT e a INFORMAÇÃO

Definida como a singularidade real por meio da qual uma energia potencial se atualiza, através da qual uma incompatibilidade é superada, a informação, segundo a formulação luminosa de Gregory Bateson, é “uma diferença que faz a diferença”. Ocorre que tanto na física quanto na biologia e na tecnologia a informação atua nessa realidade pré-individual, intermediária, que o filósofo denomina “o centro consistente do ser”; essa realidade natural pré-vital tanto quanto pré-física a partir da qual a vida e a matéria inerte são geradas e tornam-se consistentes. Ora, a possibilidade de se conceber um substrato comum à matéria inerte, ao ser vivo e ao objeto técnico apaga progressivamente as fronteiras estabelecidas pela sociedade moderna entre natureza e cultura. Mais ainda: tudo se passa como se houvesse um plano de realidade em que matéria e espírito humano pudessem se encontrar e se comunicar não como realidades exteriores postas em contato, mas como sistemas que passam a se integrar num processo de resolução que é imanente ao próprio plano. […] Na base da virada cibernética encontra-se, assim, a capacidade do homem de “falar” a linguagem do “centro consistente do ser”. (Garcia dos Santos 2003:13-4)

HARAWAY

Donna Haraway havia observado que as ciências das comunicações e a biologia moderna compartilham o mesmo ímpeto de traduzir o mundo num problema de codificação, de buscar uma linguagem comum na qual desapareça qualquer resistência ao controle instrumental e na qual toda heterogeneidade possa ser submetida a decomposição, recomposição, investimento e troca. (Garcia dos Santos 2003:14)

VIRADA CIBERNÉTICA e SOCIEDADE DE CONTROLE

É preciso, portanto, perceber a virada cibernética como esse “movimento comum” que se dá no campo da ciência e da técnica, a partir do qual se instaura a possibilidade de abrir totalmente o mundo ao controle tecnocientífico por meio da informação. (Garcia dos Santos 2003:14)

BUCKMINSTER-FULLER e GESTAÇÃO TECNOLÓGICA (aceleração da aceleração)

Richard Buckminster-Fuller, que acompanhou sistematicamente a evolução tecnológica do século XX desde a década de 1920 até meados dos anos 1980, descobriu que toda tecnologia tinha um tempo de gestação, mas também que tal tempo estava encurtando cada vez mais, o que evidenciava uma aceleração crescente. Entretanto, a partir da década de 1970, a evolução tecnológica dispara, caracterizando um movimento que Fuller chama de efemeralização, isto é, aceleração da aceleração, aceleração exponencial que faz com que as transformações comecem a se precipitar. (Garcia dos Santos 2003:15-6)

FUSÕES e ONDAS TECNOLÓGICAS

Com efeito, a partir da década de 1970 a informática começa a penetrar em todos os setores e a favorecer fusões de tecnologias diferentes, que haviam se desenvolvido separadamente […]. Quando há fusões de linhagens tecnológicas diferentes, a soma nunca é 1 + 1 = 2, e sim = 3, pois além do que cada linhagem traz a soma potencializa algo até então impensável nos ramos separados. A inovação conduziu então a produção industrial a uma verdadeira mutação que afetou inclusive a lógica dos investimentos nas empresas de ponta: a partir de meados da década de 1980 o princípio do retorno do capital começou a deixar de comandar o processo de substituição de tecnologias e passou a prevalecer o princípio do surfe: há ondas tecnológicas e as empresas têm que surfar – não há mais tempo para esperar o retorno do capital investido, as próprias ondas tecnológicas exigem que se esteja na crista da onda para não morrer. (Garcia dos Santos 2003:16)

GLOBALIZAÇÃO e TECNOLOGIA

Ninguém ignora que o desenvolvimento tecnológico encontra-se na base da globalização. Mas poucos a concebem como o fruto de uma aliança entre o capital e a tecnociência que se estende ao nível planetário ao mesmo tempo que consagra a inovação tecnológica como instrumento de supremacia econômica e política. (Garcia dos Santos 2003:15-6)

MUTAÇÕES na VIDA, TRABALHO e CULTURA

Quando percebemos que na ótica do biotecnólogo uma planta, um animal e até mesmo o ser humano reduz-se a um pacote de informações – porque o que interessa é o agenciamento das suas informações genéticas –, realizamos melhor a mudança de perspectiva. Por outro lado, a noção de trabalho [eletrônica e flexibilização] e até mesmo a de produção de conhecimento [eletrônica e recombinação] também são profundamente alteradas, agora não pela informação genética, mas pela digital. (Garcia dos Santos 2003:17)

Em suma: a informação enquanto diferença que faz a diferença reconfigura o trabalho, o conhecimento e a vida, enquanto a virada cibernética transforma o mundo num inesgotável banco de dados. […] [O] capitalismo de ponta passa a interessar-se mais pelo controle dos processos do que dos produtos, mais pelas potências, virtualidades e performances do que pelas coisas mesmas. O capital […] começa a deslocar-se para o campo do virtual, voltando-se para uma economia futura cujo comportamento é analisado por meio de simulações cada vez mais complexas. (Garcia dos Santos 2003:17-8)

INFORMAÇÃO COMO VETOR DE ATUALIZAÇÃO-VIRTUALIZAÇÃO (mais do que a realidade virtual, é a realidade do virtual).

[C]omo germe que atualiza a potência do virtual, ela [a informação] é o operador da passagem de uma dimensão da realidade para outra, se lembrarmos que a dimensão atual da realidade é a dimensão do existente, ao passo que a dimensão virtual é a do que existe enquanto potência. Assim, é a informação que permite ao capital global e à tecnociência passarem da dimensão atual da realidade para a sua dimensão virtual. Agora se torna possível investir sobre toda criação, inclusive a criação da vida. Sabemos que por meio da privatização das telecomunicações, da colonização das redes e do próximo loteamento do campo eletromagnético, o capital global busca controlar o acesso e a exploração do ciberespaço; mas nos esquecemos de que a ambição maior da nova economia é assenhorear-se da dimensão virtual da realidade, e não apenas da dimensão da realidade virtual, do ciberespaço, como tem sido observado. […] Aliado à tecnociência, o capitalismo tem a ambição de apropriar-se do futuro. (Garcia dos Santos 2003:18)

O MUNDO COMO BANCO DE DADOS a ser ECONOMICAMENTE EXPLORADO com GARANTIAS JURÍDICAS

Levando a instrumentalização ao extremo, a virada cibernética permite que a tecnociência considere tudo o que existe ou existiu como matéria-prima a ser processada por uma tecnologia que lhe agrega valor. Tal possibilidade abriu para a apropriação capitalista um horizonte e um campo de atuação insuspeitos: o plano molecular do finito ilimitado no qual, lembrando Deleuze, um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações. Se o mundo é um banco de dados, a atividade valorizada é aquela que nele garimpa informações passíveis de serem traduzidas em novas configurações e apresentadas como inovações. Não é difícil perceber, então, que tanto para a tecnociência como para o capital global a preocupação primeira consistiu em encontrar uma formulação jurídica que lhes permitisse assegurar o acesso e o controle da informação nos dois extremos, isto é, no plano molecular em que ela se encontra, mas também no plano global, no mercado mundial em que ela será explorada depois de reprogramada. (Garcia dos Santos 2003:18-9)

APROPRIAÇÃO PRIVADA da VIDA

Os sistemas de propriedade intelectual foram a saída jurídica encontrada para a proteção da inovação fundada na manipulação da informação genética ou digital. Mas para que isso ocorresse foi preciso transferir para esse terreno o regime de patentes, que vigorava na esfera industrial e selava as relações entre o direito e a ciência, protegendo a propriedade de artefatos e máquinas […]. Ora, tal transferência não se configura como continuação ou simples desdobramento de um monopólio temporário de exploração concedido aos inventores desde o século XIX; na verdade, ela é muito mais do que isso. […] Os direitos de propriedade intelectual consagram a dessacralização total da vida, ao legitimarem a apropriação, a exploração e a monopolização de seus componentes. (Garcia dos Santos 2003:19)

[E]ssa revolução […] começa com uma proteção jurídica específica para as plantas por meio do Plant Act de 1930 nos Estados Unidos, abarca os microorganismos em 1980 com o caso Chakrabarty, estende-se aos animais no final da mesma década e, finalmente, chega ao homem, com o caso Moore. […] [F]oi-se pouco a pouco elaborando um modelo jurídico que, partindo de uma concepção sagrada do ser vivo, desembocou numa concepção instrumental e até mesmo industrial. (Garcia dos Santos 2003:20)

[U]ma ruptura se deu no momento em que se reconheceu o direito de se patentear uma bactéria geneticamente modificada – desde então a vida torna-se um patrimônio genético suscetível de apropriação e, como tal, a última enclosure (Garcia dos Santos 2003:20-1)

PROPRIEDADE INTELECTUAL e DESQUALIFICAÇÃO DO TRABALHO DA NATUREZA

[T]oda essa transformação que a ênfase na propriedade intelectual acarreta no regime de propriedade e até mesmo no objeto a ser apropriado é muito pouco discutida pelos críticos do capitalismo. Passa despercebido o caráter intrinsecamente predatório de uma cultura e de uma sociedade que começaram a considerar legítimas e justas tanto a redução dos seres vivos à condição de matéria-prima sem valor quanto a pretensão do biotecnólogo de reivindicar para sua atividade “inventiva” a exclusividade da geração de valor. Passa despercebida a desqualificação sumária do “trabalho” da natureza e de todo tipo de trabalho humano, em todas as culturas e sociedades, exceto o trabalho tecnocientífico. (Garcia dos Santos 2003:21)

QUESTIONAR a ACELERAÇÃO (recado à “esquerda”?)

[N]em sempre fica claro o sentido da opção pela máxima aceleração. Os sociólogos, os economistas, mas também os políticos parecem não se dar conta dos efeitos colaterais que a velocidade máxima pode produzir nas relações sociais. De certo modo, continua intacto o mito do século XIX segundo o qual o progresso só traz benefícios e bem-estar, cabendo aos democratas lutar pela sua universalização. E, porque o mito do progresso continua intocado, as forças progressistas não discutem politicamente a tecnologia. (Garcia dos Santos 2003:22)

TECNOLOGIA e SELEÇÃO CAPITALISTA (fascismo e capitalismo)

Exigida pela aceleração econômica e tecnológica total em curso, a seleção seria um modo de “processar” as categorias sociais e as populações em dois registros. No primeiro, trata-se de neutralizar aquelas que se excluíram ou foram excluídas do movimento total, seja porque o recusavam e a ele resistiam, seja porque se mostraram incapazes de acompanhá-lo, tornando-se então “descartáveis”, para usar as palavras do subcomandante Marcos. No segundo, trata-se de favorecer e estimular aquelas categorias e populações que podem conferir a máxima eficácia à ordem econômica e tecnocientífica, segundo os parâmetros da aceleração total. Assim, Auschwitz seria o emblema negativo da seleção, enquanto a nova eugenia que se constitui com a engenharia genética, a sociobiologia e o neodarwinismo seriam o positivo. (Garcia dos Santos 2003:23)

Auschwitz seria o altar do capitalismo porque ali o homem é sacrificado em nome do progresso, porque o critério da máxima racionalidade reduz o homem ao seu valor de matéria-prima; seria o último estágio das Luzes, como a realização plena do cálculo por ela inaugurado; e seria, enfim, o modelo de base da sociedade tecnológica porque o extermínio em escala industrial consagra até mesmo na morte a busca de funcionalidade e eficiência, princípios fundamentais do sistema técnico moderno. (Garcia dos Santos 2003:24)

Susan George percebeu o caráter genocida implícito na estratégia global do neoliberalismo quando, constatando que o sistema atual é uma máquina universal de destruição do ambiente e de produção de perdedores, procurou colocar-se na posição daqueles que mais lucram com ele e descobriu que eles estavam inquietos. (Garcia dos Santos 2003:25)

O modelo de Auschwitz é o contrário do que precisamos para atingir o objetivo. […] A seleção das “vítimas” não deve ser responsabilidade de ninguém, senão das próprias “vítimas”. Elas selecionarão a si mesmas a partir de critérios de incompetência, de inaptidão, de pobreza, de ignorância, de preguiça, de criminalidade e assim por diante; numa palavra, elas encontrar-se-ão no grupo dos perdedores. [GEORGE, Susan. Le rapport Lugano. Paris, Fayard, 2000, p. 344-345. Traduzido do inglês por William Olivier Desmond. (Edição brasileira: O relatório Lugano. São Paulo, Boitempo, 2001.)] (Garcia dos Santos 2003:27)

Ora, se o ponto de vista de Müller e George for verdadeiro, a questão do binômio inclusão-exclusão torna-se central e a questão da resistência ao modelo dominante passa pela luta em prol da manutenção da diversidade de culturas e de sociedades, mas também em prol da diversidade de temporalidades e de ritmos, que não se aniquilam diante do imperativo da aceleração total. Em outras palavras, luta pela possibilidade de outros devires, diferentes daquele concebido pela tecnociência e pelo capital global. Vale dizer: luta pela existência e pela continuidade da existência. (Garcia dos Santos 2003:28)

BRASIL PÓS-CATASTRÓFICO

O Brasil continua se vendo como país do futuro e talvez esta seja a razão por que os brasileiros não têm olhos para perceber a ruína moderna que está se construindo. Foi preciso que um sociólogo alemão (Robert Kurz, em seu livro O colapso da modernização) nos mostrasse que o esforço desenvolvimentista do Terceiro Mundo não pode mais trazer a prometida modernização da sociedade para que, com ela, descobríssemos que o projeto de futuro já ficou para trás e que vivemos numa “sociedade pós-catástrofe”, em que predomina a dinâmica do desmoronamento. (Garcia dos Santos 2003:31)

OS SINAIS DA CATÁSTROFE

[A]umento do desemprego, da violência e da miséria; desindustrialização e endividamento; desmontagem das instituições e serviços públicos; recuo da presença do Estado nas diferentes regiões; degradação ambiental; devastação na Amazônia e invasão de terras indígenas; desestruturação urbana; papel crescente do tráfico de drogas e do crime organizado na vida das cidades –, atentos principalmente à conversão de parcelas cada vez maiores da população em não-pessoas sociais, isto é, “sujeitos monetários sem dinheiro”, para usar a formulação de Kurz (Garcia dos Santos 2003:31)

SACRALIZAÇÃO DA RACIONALIDADE TECNOCIENTÍFICA-ECONÔMICA

[P]ela primeira vez na história o sistema capitalista, agora globalizado, passa a excluir em vez de incluir parcelas cada vez maiores da força de trabalho. Isso porque a concorrência no mercado mundial e o casamento da tecnociência com o capital globalizado impõem um padrão de produtividade tão alto que a própria lógica do sistema acaba tornando-o destrutivo e talvez até mesmo autodestrutivo. Ora, não deixa de ser irônico e paradoxal pensar que justamente quando o capitalismo parece triunfar no mundo inteiro ele precisa entrar em guerra com todas as sociedades e todas as culturas porque a estratégia da aceleração total funde, num só e único movimento, uma racionalidade tecnocientífica que recusa qualquer limitação ao seu desenvolvimento e uma racionalidade econômica que rejeita até mesmo a idéia de qualquer limite para o capital. (Garcia dos Santos 2003:32-3)

CONSIDERAÇÕES FINAIS (sociologia da tecnologia e a “esquerda”)

Como se vê, em vez de discutir as perspectivas que a revolução microeletrônica e a internet abrem à luta pelo socialismo, pus em discussão o campo de conflitos no qual estamos metidos desde que a virada cibernética deu novo fôlego ao capital e fragilizou sobremaneira os trabalhadores, os pobres e os excluídos de todo o mundo. […] Várias vezes já me disseram que, enquanto sociólogo da tecnologia, eu me ocupo de questões que não são relevantes para a maioria do povo brasileiro porque esta não tem acesso ao caderno escolar, quanto mais ao computador. Mas defendo a idéia de que é preciso sim discutir politicamente a tecnologia e conhecer as opções tecnológicas possíveis para evitar que elas nos sejam apresentadas como inexoráveis e enfiadas por nossa goela abaixo. Dentro da esquerda, precisamos deixar de lado a ingenuidade quanto ao papel progressista da tecnociência no capitalismo contemporâneo. (Garcia dos Santos 2003:33)