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As técnicas do corpo (Mauss 2003 [1934])

As técnicas do corpo (Mauss 2003 [1934])

MAUSS, Marcel. 2003. As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, pp.399-422. [1934]

[Comunicação apresentada à Sociedade de Psicologia em 17 de maio de 1934. ]

SUMÁRIO

I. Noção de técnica do corpo
II. Princípios de classificação das técnicas do corpo
III. Enumeração biográfica das técnicas do corpo
IV. Considerações gerais

I. Noção de técnica do corpo

ESTUDO INDUTIVO-DESCRITIVO (do concreto-descritivo [as técnicas] ao abstrato-teórico [a técnica])

Eu digo as técnicas do corpo, porque se pode fazer a teoria da técnica do corpo a partir de um estudo, de uma exposição, de uma descrição pura e simples das técnicas do corpo. Entendo por essa expressão as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo. Em todo caso, convém proceder do concreto ao abstrato, não inversamente. (Mauss 2003:401)

DEFINIÇÃO DE “TÉCNICAS DO CORPO”

Entendo por essa expressão [i.e.: “técnicas do corpo”] as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo. (Mauss 2003:401)

TÉCNICAS DO CORPO COMO TERRENO AINDA DESCONHECIDO E PLENO DE DESCOBERTAS

Eu sabia perfeitamente que a marcha, o nado, por exemplo, que coisas desse tipo eram específicas a sociedades determinadas; que os polinésios não nadam como nós, que minha geração não nadou como nada a geração atual. Mas que fenômenos sociais eram esses? Eram fenômenos sociais “diversos”, e, como essa rubrica é um horror, pensei várias vezes nesse “diversos”, ao menos toda vez que fui obrigado a falar disso, de tempos em tempos. (Mauss 2003:401-2)

GÊNESE DO “PROBLEMA” DAS TÉCNICAS DO CORPO I – NADAR

Um exemplo nos fará compreender isso imediatamente, a nós, psicólogos, biólogos, sociólogos. Outrora nos ensinavam a mergulhar depois de ter aprendido a nadar. E, quando nos ensinavam a mergulhar, nos diziam para fechar os olhos e depois abri-los dentro d’água. Hoje a técnica é inversa. Começa-se toda aprendizagem habituando a criança a ficar dentro d’água de olhos abertos. Assim, antes mesmo que nadem, as crianças são treinadas sobretudo a controlar reflexos perigosos mas instintivos dos olhos, são antes de tudo familiarizadas com a água, para inibir seus medos, criar uma certa segurança, selecionar paradas e movimentos. Há portanto uma técnica do mergulho e uma técnica da educação do mergulho que foram descobertas em meu tempo. E vejam que se trata claramente de um ensino técnico, e que há, como para toda técnica, uma aprendizagem do nado. Por outro lado, nossa geração, aqui, assistiu a uma mudança completa de técnica: vimos o nado a braçadas e com a cabeça fora d’água ser substituído pelas diferentes espécies de crawl. Além disso, perdeu-se o costume de engolir água e de cuspi-la. Pois os nadadores se consideravam, em meu tempo, como espécies de barcos a vapor. Era estúpido, mas, enfim, ainda faço esse gesto: não consigo desembaraçar-me de minha técnica. Eis aí, portanto, uma técnica corporal específica, uma arte gímnica aperfeiçoada em nosso tempo. (Mauss 2003:402)

GÊNESE DO “PROBLEMA” DAS TÉCNICAS DO CORPO II – CAVAR

[D]urante a guerra pude fazer numerosas observações sobre essa especificidade das técnicas. Como a de cavar. As tropas inglesas com as quais eu estava não sabiam servir-se de pás francesas, o que obrigava a substituir 8 mil pás por divisão quando rendíamos uma divisão francesa, e vice-versa. Eis aí, de forma evidente, como uma habilidade manual só se aprende lentamente. Toda técnica propriamentedita tem sua forma. (Mauss 2003:403)

GÊNESE DO “PROBLEMA” DAS TÉCNICAS DO CORPO III – MARCHAR

Todos sabeis que a infantaria britânica marcha a um passo diferente do nosso: diferença de freqüência, com uma outra duração. Não falo, por enquanto, do balanceio inglês, nem da ação do joelho etc. Ora, o regimento de Worcester, tendo feito proezas consideráveis durante a batalha do Aisne, ao lado da infantaria francesa, pediu a autorização real para ter toques de clarins e baterias francesas, uma banda de corneteiros e de tambores franceses. O resultado foi pouco encorajador. […] Tudo era discordante em sua marcha. Quando tentava marchar direito, era a música que não marcava o passo. Com isso, o regimento de Worcester foi obrigado a suprimir os clarins franceses. (Mauss 2003:403)

Uma espécie de revelação me veio no hospital. Eu estava doente em Nova York [em 1926] e me perguntava onde tinha visto moças andando como minhas enfermeiras. Eu tinha tempo para refletir sobre isso. Descobri, por fim, que fora no cinema. De volta à França, passei a observar, sobretudo em Paris, a freqüência desse andar; as jovens eram francesas e caminhavam também dessa maneira. De fato, os modos de andar americanos, graças ao cinema, começavam a se disseminar entre nós. Era uma idéia que eu podia generalizar. (Mauss 2003:403-4)

Num livro de Elsdon Best, publicado na França em 1925, acha-se um documento notável sobre a maneira de andar da mulher maori (Nova Zelândia). […] “As mulheres indígenas adotam um certo ‘gait‘ (a palavra inglesa é deliciosa): a saber, um balanceio solto e no entanto articulado dos quadris que nos parece desgracioso, mas que é extremamente admirado pelos Maori. As mães exercitavam (o autor diz “drill”) suas filhas nessa maneira de andar que é chamada ‘onioi‘. Ouvi mães dizerem a suas filhas (eu traduzo): ‘não estás fazendo o onioi‘, quando uma menina deixava de fazer esse balanceio.” (The Maori, I, p. 408-9, cf. p. 135.) Era uma maneira adquirida, e não uma maneira natural de andar. Em suma, talvez não exista “maneira natural” no adulto. E com mais razão ainda quando outros fatos técnicos intervém: no que se refere a nós, o fato de andarmos calçados transforma a posição de nossos pés; sentimos isso bem ao andarmos descalços. (Mauss 2003:405-6)

GÊNESE DO “PROBLEMA” DAS TÉCNICAS DO CORPO IV – HÁBITOS e ATITUDES CORPORAIS

Mas o mesmo vale para toda atitude do corpo. Cada sociedade tem seus hábitos próprios. (Mauss 2003:403)

A posição dos braços e das mãos enquanto se anda é uma idiossincrasia social, e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e mecanismos puramente individuais, quase inteiramente psíquicos. Por exemplo: creio poder reconhecer assim uma jovem que foi educada no convento. Ela anda, geralmente, com as mãos fechadas. E lembro-me ainda de meu professor do ginásio interpelando-me: “Seu animal! Andas o tempo todo com as manoplas abertas!”. Portanto, existe igualmente uma educação do andar. (Mauss 2003:404)

[H]á posições da mão, em repouso, convenientes ou inconvenientes. Assim, podeis adivinhar com certeza, se uma criança conserva à mesa os cotovelos junto ao corpo e, quando não come, as mãos sobre os joelhos, que ela é inglesa. Uma criança francesa não se comporta mais assim: abre os cotovelos em leque e os apoia sobre a mesa (Mauss 2003:404)

GÊNESE DO “PROBLEMA” DAS TÉCNICAS DO CORPO V – CORRER

Imaginem que meu professor de ginástica, um dos melhores formados em Joinville, por volta de 1860, ensinou-me a correr com os punhos colados ao corpo: movimento completamente contraditório a todos os movimentos da corrida; foi preciso que eu visse os corredores profissionais de 1890 para compreender que devia correr de outro modo. (Mauss 2003:404)

GÊNESE DO “PROBLEMA” DAS TÉCNICAS DO CORPO VI – MAGIA

Eis aqui […] uma fórmula de ritual de caça e ritual de corrida ao mesmo tempo. Sabe-se que o australiano consegue correr atrás de cangurus, emas, cães selvagens, até deixá-los exaustos. […] Um desses rituais de corrida, observado há já cem anos, é o da corrida ao cão selvagem, o dingo, nas tribos dos arredores de Adelaide. O caçador não cessa de cantar a seguinte fórmula: […] Numa outra cerimônia, a da caça ao opossum, o indivíduo leva na boca um pedaço de cristal de rocha (kawemukka), pedra mágica entre todas, e canta uma fórmula do mesmo gênero, e é assim convencido de que pode desaninhar o gambá, trepar e ficar suspenso na árvore pelo cinto, perseguir, pegar e finalmente matar essa caça difícil. […] [O] que queremos destacar agora é a confiança, o momentum psicológico capaz de associar-se a um ato que é antes de tudo uma proeza de resistência biológica, obtida graças a palavras e a um objeto mágico. […] Ato técnico, ato físico, ato mágico-religioso confundem-se para o agente. (Mauss 2003:406-7)

HABITUS (disposições-faculdades adquiridas) – (anti-Bergson-memória/Tarde-imitação-repetição?)

Assim, durante muitos anos tive a noção da natureza social do “habitus“. […] A palavra exprime, infinitamente melhor que “hábito”, a “exis” [hexis], o “adquirido” e a “faculdade” de Aristóteles (que era um psicólogo). Ela não designa os hábitos metafísicos, a “memória” misteriosa, tema de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses “hábitos” variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição. (Mauss 2003:404)

A IMITAÇÃO PRESTIGIOSA e o TRÍPLICE “HOMEM TOTAL” (bio-psico-sociológico)

[N]ão se podia ter uma visão clara de todos esses fatos, da corrida, do nado etc., senão fazendo intervir uma tríplice consideração em vez de uma única, fosse ela mecânica e física, como uma teoria anatômica e fisiológica da marcha, ou, ao contrário, psicológica ou sociológica. É o tríplice ponto de vista, o do “homem total”, que é necessário. (Mauss 2003:405)

Em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo humano os fatos de educação predominavam. A noção de educação podia sobrepor-se à de imitação. […] O que se passa é uma imitação prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. O indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros. […] É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social. No ato imitador que se segue, verificam-se o elemento psicológico e o elemento biológico. […] Mas o todo, o conjunto é condicionado pelos três elementos indissoluvelmente misturados. (Mauss 2003:405)

[O] psicólogo sozinho não poderá oferecer senão explicações duvidosas e precisará da colaboração de duas ciências vizinhas: fisiologia, sociologia. (Mauss 2003:409)

O ERRO FUNDAMENTAL

Todos cometemos, e cometi durante muitos anos, o erro fundamental de só considerar que há técnica quando há instrumento. Era preciso voltar a noções antigas, aos dados platônicos sobre a técnica, quando Platão falava de uma técnica da música e em particular da dança, e ampliar essa noção. (Mauss 2003:407)

DEFINIÇÃO DE “TÉCNICA” (ato tradicional eficaz de ordem mecânica)

Chamo técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser tradicional e eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição. Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral. […] Mas qual é a diferença entre o ato tradicional eficaz da religião, o ato tradicional, eficaz, simbólico, jurídico, os atos da vida em comum, os atos morais, de um lado, e o ato tradicional das técnicas, de outro? É que este último é sentido pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, e é efetuado com esse objetivo. (Mauss 2003:407)

CORPO COMO PRIMEIRO OBJETO-MEIO TÉCNICO

O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo. […] Antes das técnicas de instrumentos, há o conjunto das técnicas do corpo. (Mauss 2003:407)

Essa adaptação constante a um objetivo físico, mecânico, químico (por exemplo, quando bebemos) é efetuada numa série de atos montados […] no indivíduo não simplesmente por ele próprio mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que nela ocupa. (Mauss 2003:408)

CORPO SIMBÓLICO (símbolo corporificado)

[T]odas essas técnicas se ordenam muito facilmente num […] sistema de montagens simbólicas [, num] concurso do corpo e dos símbolos morais ou intelectuais. (Mauss 2003:408)

REFLEXIVIDADE e OLHAR (fato social)

Olhemos para nós mesmos, neste momento. Tudo em nós todos é imposto. Estou a conferenciar convosco; vedes isso em minha postura sentada e em minha voz, e me escutais sentados e em silêncio. Temos um conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não. Assim, atribuiremos valores diferentes ao fato de olhar fixamente: símbolo de cortesia no exército, de descortesia na vida corrente. (Mauss 2003:408)

II. Princípios de classificação das técnicas do corpo

AS TdC (para além da divisão do trabalho) SE DIVIDEM-VARIAM SEMPRE POR SEXO e IDADE

[SEXO] Tomemos a maneira de fechar o punho. O homem fecha normalmente o punho com o polegar para fora, a mulher com o polegar para dentro; talvez porque ela não foi educada para isso, mas estou certo de que, se a educassem, ela teria dificuldades. O soco, o arremesso do golpe, na mulher, são frouxos. E todos sabem que, ao lançar uma pedra, o arremesso da mulher é não apenas frouxo, mas sempre diferente do do homem: plano vertical em vez de horizontal. […] Talvez se trate aqui de duas instruções. Pois há uma sociedade dos homens e uma sociedade das mulheres. (Mauss 2003:409)

[IDADE] A criança se agacha normalmente. Nós não sabemos mais nos agachar. Considero isso um absurdo e uma inferioridade de nossas raças, civilizações, sociedades. […] A posição agachada é, em minha opinião, uma posição interessante, que pode ser conservada numa criança. É um gravíssimo erro proibir-lhe. Toda a humanidade, exceto nossas sociedades, a conservou. (Mauss 2003:409)

SOMATIZAÇÃO DAS PRÁTICAS

Há portanto coisas que acreditamos ser da ordem da hereditariedade e que são, na verdade, de ordem fisiológica, de ordem psicológica e de ordem social. Uma certa forma dos tendões e mesmo dos ossos não é senão uma conseqüência de uma certa forma de apoiar-se e firmar-se. (Mauss 2003:410)

AS TdC (para além da divisão do trabalho) TAMBÉM PODEM SE CLASSIFICAR POR RENDIMENTO (adestramento, habilidade, destreza, presença de espírito)

O adestramento, como a montagem de uma máquina, é a busca, a aquisição de um rendimento. Aqui, é um rendimento humano. Essas técnicas são portanto as normas humanas do adestramento humano. Assim como fazemos com os animais, os homens as aplicaram voluntariamente a si mesmos e a seus filhos. As crianças foram provavelmente as primeiras criaturas assim adestradas, antes dos animais, que precisaram primeiro ser domesticados. Numa certa medida, portanto, eu poderia comparar essas técnicas, elas mesmas e sua transmissão, a adestramentos, classificando-as por ordem de eficácia. (Mauss 2003:410)

AS TdC (para além da divisão do trabalho) TAMBÉM PODEM SE CLASSIFICAR ENFIM POR TRANSMISSÃO (educação)

[Homenagem a Hertz] A educação da criança é repleta daquilo que chamam detalhes, mas que são essenciais. Veja-se o problema da ambidestria, por exemplo: observamos mal os movimentos da mão direita e os da mão esquerda, e sabemos mal como são ensinados. (Mauss 2003:411)

MODOS DE VIDA (adestramento, imitação)

Há razão de estudar todos os modos de adestramento, de imitação e, particularmente, essas formas fundamentais que podemos chamar o modo de vida, o modus, o tonus, a “matéria”, as “maneiras”, a “feição”. (Mauss 2003:411)

III. Enumeração biográfica das técnicas do corpo

Vamos simplesmente seguir mais ou menos as idades do homem, a biografia normal de um indivíduo, para dispor as técnicas que lhe dizem respeito ou que lhe ensinam. (Mauss 2003:412)

1. Técnicas do nascimento e da obstetrícia (em pé, deitada de costas (nós), de quatro)

Há técnicas do parto, seja por parte da mãe, seja por parte de seus auxiliares; do modo de pegar a criança, da ligadura e corte do cordão umbilical; cuidados com a mãe, com a criança. Essas são questões já bastante consideráveis. Eis algumas outras: a escolha da criança, o abandono dos fracos, a condenação à morte dos gêmeos são momentos decisivos na história de uma raça. Tanto na história antiga como nas outras civilizações, o reconhecimento da criança é um acontecimento capital. (Mauss 2003:412)

2. Técnicas da infância

Atitudes dos dois seres em relação: a mãe e a criança. (Mauss 2003:412); A humanidade pode perfeitamente ser dividida em povos com berços e povos sem berços. Pois há técnicas do corpo que supõem um instrumento. Nos países com berços situam-se quase todos os povos do hemisfério norte (Mauss 2003:413)

Criação e alimentação da criança: Consideremos a criança: a sucção, a maneira de transportá-la etc. A história desse transporte é muito importante. A criança transportada junto à pele da mãe durante dois ou três anos tem uma atitude completamente diferente frente a ela do que uma criança não transportada; ela tem um contato com sua mãe muito diferente que o da criança entre nós. Pendura-se ao pescoço, ao ombro, aos quadris dela. É uma ginástica notável, essencial para toda a sua vida. Assim como, para a mãe, é uma outra ginástica transportá-la. Parecem originar-se aqui, inclusive, estados psíquicos desaparecidos de nossas infâncias. (Mauss 2003:412-3)

Desmame: Amamentação muito longa, geralmente de dois a três anos. Obrigação de amamentar, às vezes mesmo obrigação de amamentar animais. (Mauss 2003:413)

A criança após o desmame: Ela sabe comer e beber; é ensinada a andar; sua visão, sua audição, seu senso do ritmo, da forma e do movimento são exercitados, freqüentemente para a dança e a música. […] Ela aprende as noções e os costumes de relaxamento, de respiração. Adota certas posturas, que geralmente lhe são impostas. (Mauss 2003:413)

3. Técnicas da adolescência

O grande momento da educação do corpo é, de fato, o da iniciação. Imaginamos, em virtude da maneira como nossos filhos e filhas são educados, que tanto uns quanto as outras adquirem as mesmas maneiras e posturas, recebendo o mesmo treinamento em toda parte. Essa já é uma idéia errada entre nós —sendo completamente falsa em povos ditos primitivos. Além disso, descrevemos os fatos como se houvesse sempre e em toda parte algo do gênero de nossa escola, que começa a partir de um momento e deve cuidar da criança e educá-la para a vida. É o contrário que é a regra. Contudo, tanto para os homens como para as mulheres, o momento decisivo é o da adolescência. É nesse momento que eles aprendem definitivamente as técnicas do corpo que conservarão durante toda a sua idade adulta. (Mauss 2003:413-4)

4. Técnicas da idade adulta

Para fazer um inventário destas, podemos seguir os diversos momentos da jornada em que se repartem movimentos coordenados e pausas. […] Podemos distinguir o sono e a vigília, e, na vigília, o repouso e a atividade. (Mauss 2003:414)

Deixo de lado as técnicas do corpo que funcionam como profissões ou parte de profissões ou de técnicas mais complexas. (Mauss 2003:417)

1) Técnicas do sono: podemos distinguir as sociedades que nada têm para dormir, exceto “o chão duro”, e as outras que se valem de um instrumento. […] Há os povos com esteira e os povos sem esteira. […] — Há os com travesseiros e os sem travesseiros. — Há as populações que se comprimem em roda para dormir, em volta de um fogo, ou mesmo sem fogo. Há maneiras […] de se aquecer e de aquecer os pés. […] — Há, enfim, o sono em pé. […] Os velhos historiadores das invasões nos representam hunos e mongóis dormindo a cavalo. Isso ainda é verdade, e seus cavaleiros adormecidos não detêm a marcha dos cavalos. […] Há o uso do cobertor. Povos que dormem cobertos e os que dormem não cobertos. Há a rede e a maneira de dormir suspenso. (Mauss 2003:414-5)

2) Vigília: Técnicas do repouso: O repouso pode ser repouso completo ou simples pausa: deitado, sentado, agachado etc. […] A maneira de sentar-se é fundamental. Podeis distinguir a humanidade de cócoras e a humanidade sentada. E, nesta última, os povos com bancos e os sem bancos e estrados, os povos com assentos e os sem assentos. […] Há os povos que têm mesas e os que não as têm. A mesa, a “trapeza” grega, está longe de ser universal. Em todo o Oriente, usa-se normalmente um tapete, uma esteira. Tudo isso é bastante complicado, pois esses repousos comportam a refeição, a conversação etc. […] Alguns conseguem ficar num pé só sem ajuda, outros se apoiam num bastão. Eis aí verdadeiros traços de civilizações formados por essas técnicas de repouso, comuns a um grande número, a famílias inteiras de povos. […] Há ainda o repouso ativo, geralmente estético; assim, é freqüente mesmo a dança no repouso etc. (Mauss 2003:415)

3) Técnicas da atividade, do movimento: Movimentos do corpo inteiro: rastejar; pisar, andar. (Mauss 2003:416)
A marcha: habitus do corpo em pé ao andar, respiração, ritmo da marcha, balanceio dos punhos, dos cotovelos, progressão do tronco adiante do corpo ou por avanço alternado dos dois lados do corpo (estamos habituados a avançar com o corpo todo de uma só vez). Pés para fora, pés para dentro. Extensão da perna. (Mauss 2003:416)
Corrida: Posição do pé, dos braços, respiração, magia da corrida, resistência. (Mauss 2003:416)
Dança (introvertidaXextrovertida; movimento no mesmo lugar; distinção por sexo; dança enlaçada europeia) (Mauss 2003:417)
Salto (de frente ou de lado, do chão ou de um trampolim) (Mauss 2003:417)
Escalar (árvores ou montanhas, com ou sem equipamento) (Mauss 2003:417)
Descida (como descer declives com chinelos e saltos-altos)
Nado: Mergulhar, nadar; utilizações de meios suplementares: bóias, pranchas etc. Estamos no caminho da invenção da navegação. (Mauss 2003:418)
Movimentos de força: Empurrar, puxar, levantar. Todos sabem o que é um esforço muscular da região lombar. É uma técnica aprendida e não uma simples série de movimentos. […] Lançar, arremessar no ar, em superfície etc.; a maneira de segurar nos dedos o objeto a lançar é importante e comporta grandes variações. Segurar. Segurar com os dentes. Uso dos dedos do pé, da axila etc. […] Aqui situam-se todas as habilidades manuais, as prestidigitações, a acrobacia, o atletismo etc. (Mauss 2003:418)

4) Técnicas dos cuidados do corpo.
Esfregar, lavar, ensaboar: Os inventores do sabão não foram os antigos, eles não se ensaboavam. Foram os gauleses. E, por outro lado, independentemente, toda a América central e a do sul (nordeste) se ensaboavam com a madeira-do-panamá e com o pau-brasil, donde o nome desse império. (Mauss 2003:418)
Cuidados da boca: Técnicas do tossir e do cuspir. (Mauss 2003:418)
Higiene das necessidades naturais: fatos sem conta (Mauss 2003:419)

5) Técnicas do consumo.
Comer (com a mão ou com talheres?)
Bebida: É muito útil ensinar as crianças a beber diretamente na fonte, na água que jorra ou em veios d’água etc., a beber com gosto. (Mauss 2003:419)

6) Técnicas da reprodução (Anthropophyteia): Nada mais técnico do que as posições sexuais. Muito poucos autores têm a coragem de falar dessa questão. […] Há todas as técnicas dos atos sexuais normais e anormais. Toques por sexo, mistura das respirações, beijos etc. Aqui as técnicas e a moral sexuais estão em estreitas relações. (Mauss 2003:419)

7) Há, por fim, as técnicas de medicação, do anormal: massagens etc. Mas deixemos de lado. (Mauss 2003:419)

IV. Considerações gerais

FATO SOCIAL

[E]m toda parte nos encontramos diante de montagens fisio-psico-sociológicas de séries de atos. Esses atos são mais ou menos habituais e mais ou menos antigos na vida do indivíduo e na história da sociedade. […] Vamos mais longe: uma das razões pelas quais essas séries podem ser montadas mais facilmente no indivíduo é que elas são montadas pela autoridade social e para ela. […] Em toda sociedade, todos sabem e devem saber e aprender o que devem fazer em todas as condições. Naturalmente, a vida social não é isenta de estupidez e de anormalidades. […] Mas o princípio é este: exemplo e ordem. Há portanto uma forte causa sociológica em todos esses fatos. (Mauss 2003:420)

ENGRENAGENS (Comte)

Qual a espessura da roda de engrenagem psicológica? Digo propositalmente roda de engrenagem. Um seguidor de Comte diria que não há intervalo entre o social e o biológico. O que posso vos dizer é que vejo aqui os fatos psicológicos como engrenagens e que não os vejo como causas, exceto nos momentos de criação ou de reforma. Os casos de invenção, de posição de princípios, são raros. (Mauss 2003:420)

TÉCNICA COMO ADAPTAÇÃO DO CORPO A SEU USO

Creio que a educação fundamental das técnicas que vimos consiste em fazer adaptar o corpo a seu uso. Por exemplo, as grandes provas de estoicismo etc., que constituem a iniciação na maior parte da humanidade, têm por finalidade ensinar o sangue-frio, a resistência, a seriedade, a presença de espírito, a dignidade etc. (Mauss 2003:421)

ENGENHARIA SOCIAL (autocrítica moderna?)

Creio que essa noção de educação das raças que se selecionam em vista de um rendimento determinado é um dos momentos fundamentais da própria história: educação da visão, educação da marcha – subir, descer, correr. É, em particular, na educação do sangue-frio que ela consiste. E este é, antes de tudo, um mecanismo de retardamento, de inibição de movimentos desordenados; esse retardamento permite, a seguir, uma resposta coordenada de movimentos coordenados, que partem então na direção do alvo escolhido. Essa resistência à perturbação invasora é fundamental na vida social e mental. Ela separa entre si, ela classifica mesmo as sociedades ditas primitivas: conforme as reações são mais ou menos brutais, irrefletidas, inconscientes, ou, ao contrário, isoladas, precisas, comandadas por uma consciência clara. […] É graças à sociedade que há uma intervenção da consciência. Não é graças à inconsciência que há uma intervenção da sociedade. É graças à sociedade que há segurança e presteza nos movimentos, domínio do consciente sobre a emoção e o inconsciente. É graças à razão que a marinha francesa obrigará seus marujos a aprender a nadar. (Mauss 2003:421)

TÉCNICAS DE COMUNICAÇÃO COM DEUS (“técnicas do taoísmo, técnicas do corpo, da respiração, em particular”)

No meu entender, no fundo de todos os nossos estados místicos há técnicas do corpo que não foram estudadas, e que foram perfeitamente estudadas pela China e pela Índia desde épocas muito remotas. Esse estudo sócio-psico-biológico da mística deve ser feito. Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em “comunicação com o Deus”. E, embora a técnica da respiração etc., seja o ponto de vista fundamental apenas na Índia e na China, creio, enfim, que ela é bem mais difundida de um modo geral. (Mauss 2003:422)

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