fichamento
Perspectivismo harawayano (Haraway 1995[1988])

Perspectivismo harawayano (Haraway 1995[1988])

HARAWAY, Donna. 1988. Situated knowledges: the science question in feminism and the priviledge of partial perspective. Feminist Studies 14(3):575-99.

HARAWAY, Donna. 1995. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. (Trad. Mariza Corrêa) Cadernos PAGU 5:7-41. [1988]

OBS: A tradução de Mariza Corrêa publicada nos Cadernos PAGU em 1995, assim como a esmagadora maioria de traduções brasileiras de textos de Haraway, poderia ser substancialmente aprimorada. A começar pelos título e subtítulo que, a meu ver, teriam sido melhor traduzidos como “Saberes situados: a questão da ciência no feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Os trechos entre colchetes no fichamento abaixo foram alterados por mim.

A FAVOR E CONTRA

este texto é um argumento a favor de [conhecimentos situados e corporificados] e contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de ser chamado a prestar contas. (Haraway 1995:22)

LATOUR

Latour não é um teórico feminista notável [LOL], mas pode transformar-se num através de leituras tão perversas como as que ele faz do laboratório, esta enorme máquina de fazer erros significativos mais rapidamente do que qualquer outra, ganhando assim o poder de mudar o mundo. O laboratório é, para Latour, a [indústria ferroviária da epistemologia, onde] os fatos só podem mover-se nos trilhos montados a partir do laboratório para fora. Quem controla a estrada de ferro controla o território [circundante]. Como podemos ter esquecido? Mas atualmente não é da falida estrada de ferro de que precisamos, e sim das redes dos satélites. Em nossos dias, os fatos se movem em feixes de luz. (Haraway 1995:9 nota 1)

DIZER/FAZER MODERNO

há uma relação muito frouxa entre o que os cientistas acreditam ou dizem acreditar e o que eles realmente fazem. (Haraway 1995:9)

RECUSA DO PÓS-MODERNO

não podemos nos permitir esses jogos específicos com as palavras – os projetos de [construção] de conhecimento confiável a respeito do mundo “natural” não podem ser entregues ao gênero [da ficção científica paranóica ou cínica]. Quem tem interesses políticos não pode permitir que o construcionismo social se desintegre nas emanações radiantes do cinismo. (Haraway 1995:10)

NERVOSISMO COM A METÁFORA BÉLICA

quanto mais avanço na descrição do programa do construcionismo social radical e de uma versão específica do pós-modernismo, aliada aos ácidos instrumentos do discurso crítico nas ciências humanas, mais nervosa fico. Como todas as neuroses, a minha está enraizada no problema da metáfora […]. Este mundo-como-código é, [só pra começar], um campo militar de alta tecnologia, uma espécie de campo de batalha acadêmico automatizado, no qual flashes de luz chamados jogadores desintegram-se (que metáfora!) uns aos outros, de modo a [permanecerem] no jogo [de] conhecimento e poder. A tecnociência e a ficção científica desmoronam no sol de sua radiante (ir)realidade – a guerra. (Haraway 1995:12)

é hora de mudar a metáfora. (Haraway 1995:17)

CRÍTICA AO FEMINISMO PÓS-MODERNO

Desmascaramos as doutrinas de objetividade porque elas ameaçavam nosso nascente sentimento de subjetividade e [agência] histórica coletiva e nossas versões “corporificadas” da verdade, e acabamos por ter mais uma desculpa para não aprendermos nada da Física [pós-newtoniana] e mais uma razão para [abandonarmos a velha prática de auto-ajuda feminista] de consertar nossos [próprios] carros. Afinal, trata-se apenas de textos, vamos devolvê-los aos rapazes. (Haraway 1995:13)

As feministas têm interesse num projeto de ciência sucessora que ofereça uma [descrição mais adequada, rica e melhor do mundo, de modo a viver bem nele, numa relação crítica e reflexiva com nossas próprias práticas de dominação, assim como com as dos outros, e com as partes desiguais de privilégio e opressão que compõem todas as posições. Em categorias filosóficas tradicionais, talvez a questão seja ética e política, mais que epistemologia]. (Haraway 1995:15)

PARA ALÉM DO PÓS-MODERNISMO

[Todos] os componentes do desejo são paradoxais e perigosos, e sua combinação é tanto contraditória quanto necessária. As feministas não precisam de uma doutrina de objetividade que prometa transcendência, uma estória que perca o rastro de suas mediações justamente quando alguém deva ser reponsabilizado por algo, e poder instrumental ilimitado. […] Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são [feitos], não para negar [a realidade de] significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro. (Haraway 1995:16)

VERSUS

projetos de ciência sucessora versus explicações pós-modernas sobre a diferença (Harding) (Haraway 1995:17)

construtivismo radical versus [empirismo] crítico feminista (Haraway) (Haraway 1995:17)

ALTERNATIVA AO RELATIVISMO

A alternativa ao relativismo são saberes parciais, localizáveis, críticos, [mantendo] a possibilidade de redes de [conexões], chamadas de solidariedade em política[,] e de conversas compartilhadas em epistemologia. (Haraway 1995:23)

CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO AVANT LA LETTRE

Em “Blue champagne”, Varley (1986) [transmuta] o tema para [interrogar a política da intimidade e da tecnologia para uma jovem mulher paraplégica cujo dispositivo prostético, a cigana dourada [golden gypsy], lhe permite plena mobilidade. Mas dado que o dispositivo infinitamente caro é propriedade de um império intergalático de comunicação e entretenimento para o qual ela trabalha como estrela midiática fazendo “feelies”, ela só pode manter seu outro eu tecnológico, intimo e capacitador em troca de sua cumplicidade na comercialização de toda experiência. Quais são seus limites para a reinvenção da experiência para a venda?] O pessoal é político sob o signo da simulação? (Haraway 1995:18 nota 7)

O PROBLEMA DA OBJETIVIDADE

Parece-me que as feministas [têm, seletiva e flexivelmente, usado] e sido apanhadas, por dois pólos de uma tentadora dicotomia [sobre a questão da] objetividade. (Haraway 1995:8)

OBJETIVIDADE CIENTÍFICA (National Geographic)

Esses objetos fabulosos [fotografias de planetas distantes “recompostas a partir de sinais digitalizados transmitiros através da vastidão do espaço”] chegam até nós simultaneamente como registros indubitáveis do que [simplesmente] está lá, […] e como [feitos] heróicos [de] produção tecno-científica. (Haraway 1995:20)

OBJETIVIDADE FEMINISTA

objetividade feminista significa, simplesmente, [saberes situados]. (Haraway 1995:18)

construir uma doutrina utilizável, mas não inocente, da objetividade (Haraway 1995:20)

Precisamos aprender em nossos corpos, dotados [da visão estereoscópica e em cores] dos primatas, como vincular o objetivo aos nossos [rastreadores] teóricos e políticos[,] de modo a nomear onde estamos e onde não estamos, [em] dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos como nomear. Assim, de modo não muito perverso, a objetividade revela-se como algo que diz respeito à corporificação específica e particular e não, definitivamente, como algo a respeito da falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades. A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, [em lugar de fechar, o problema] da responsabilidade pela [generatividade] de todas as práticas visuais. […] A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento [situado], não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. [Ela nos permite tornarmo-nos] responsáveis [answerable] pelo que aprendemos a ver. (Haraway 1995:21)

Não há nenhuma fotografia não mediada, ou câmera escura passiva, nas [descrições] científicas de corpos e máquinas: há apenas possibilidades visuais altamente específicas, cada uma com um modo maravilhosamente detalhado, ativo e parcial de organizar mundos. […] Compreender como esses sistemas visuais funcionam, tecnicamente, socialmente e psiquicamente, deveria ser um modo de corporificar a objetividade feminista. (Haraway 1995:22)

OBJETIVIDADE como CONEXÃO PARCIAL

O eu cognoscente é parcial em todas suas formas, nunca acabado, completo, simplesmente dado ou original; é sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e, [portanto], capaz de juntar-se a outro, de ver junto sem pretender ser outro. Eis aqui a promessa de objetividade: um conhecedor científico [procura a posição de sujeito não da identidade, mas da objetividade; isto é, conexão parcial]. (Haraway 1995:26)

CONHECIMENTO e OBJETIVIDADE

O conhecimento do ponto de vista do não marcado é realmente fantástico, distorcido e, portanto, irracional. A única posição a partir da qual a objetividade não tem a possibilidade de ser [praticada] e honrada é a do ponto de vista do senhor [master], do Homem, do [Deus Único], cujo Olho produz, apropria e ordena [toda diferença]. Ninguém jamais acusou o [Deus] do monoteísmo de objetividade, apenas de indiferença. O [truque-de-deus] é auto-idêntico[,] e nos enganamos ao tomá-lo por criatividade e conhecimento, [ou mesmo] onisciência. (Haraway 1995:27)

PERSPECTIVA DOS SUBJUGADOS

As perspectivas dos subjugados não são posições “inocentes”. Ao contrário, elas são preferidas porque, em princípio, são as que [têm] menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento. (Haraway 1995:23)

Mas [como] ver desde baixo é um problema que requer, pelo menos, tanta habilidade com corpos e linguagens, com as mediações da visão, quanto têm as mais “altas” visualizações tecno-científicas. (Haraway 1995:23)

PERSPECTIVISMO

[Relativismo e totalização são ambos [“truques-de-deus”], prometendo, igualmente e inteiramente, visão de toda parte e de nenhum lugar, mitos comuns na retórica [que envolve a] Ciência. Mas é precisamente na política e na epistemologia [de] perspectivas parciais que [uma investigação duradoura, racional e objetiva se apóia]. (Haraway 1995:24)

quero argumentar a favor de uma doutrina e de uma prática [de] objetividade que [privilegia] a contestação, a desconstrução, [a construção apaixonada,] conexões em rede e a esperança na transformação [de] sistemas de conhecimento e [de] maneiras de ver. Mas não é qualquer perspectiva parcial que serve; devemos ser hostis aos relativismos e holismos fáceis, feitos de adição e subsunção das partes. […] Precisamos também buscar a perspectiva daqueles pontos de vista, que nunca podem ser conhecidos de antemão, que prometam [algo um tanto extraordinário], isto é, conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação. (Haraway 1995:24)

EPISTEMOLOGIAS FEMINISTAS

O eu dividido e contraditório é o que pode [interrogar posicionamentos] e ser responsabilizado [accountable], o que pode construir e juntar-se [a] conversas racionais e [a] imaginações fantásticas que mudam a história. Divisão, e não o ser, é a imagem privilegiada das epistemologias feministas do conhecimento científico. “Divisão”, neste contexto, [deveria envolver] multiplicidades heterogêneas, [que são] simultaneamente [salientes] e não passíveis de serem espremidas em fendas isomórficas ou [em] listas cumulativas. (Haraway 1995:26)

GÊNERO E CORPORIFICAÇÃO FEMINISTA

Gênero é um campo de diferença estruturada e estruturante, no qual as tonalidades de localização extrema, do corpo intimamente pessoal e individualizado, vibram no mesmo campo [com emissões] globais de alta tensão. A corporificação feminista, assim, não [envolve a localização] fixa num corpo reificado, fêmeo ou outro, mas [sim nódulos] em campos, inflexões em orientações e responsabilidade pela diferença nos campos [materiais-semióticos de sentido]. Corporificação é prótese significante (Haraway 1995:29)

a corporificação feminista resiste à fixação e é insaciavelmente curiosa a respeito das redes de posicionamentos diferenciais. Não há um ponto de vista feminista único porque nossos mapas requerem dimensões em demasia para que essa metáfora sirva para fixar nossas visões. Mas a meta [das teóricas do ponto de vista feminista, de uma epistemologia e uma política de posicionamento engajado e responsável, permanece eminentemente] potente. A meta são melhores [descrições] do mundo, isto é, “ciência”. (Haraway 1995:32)

A METÁFORA VISUAL

A metáfora [visual] nos convida a investigar os variados aparatos [de] produção visual, incluindo as tecnologias protéticas que [fazem interface] com nossos olhos e cérebros biológicos. E aqui encontramos maquinários muito particulares para o processamento de regiões do espectro eletro-magnético em nossas [imagens] do mundo. É nos meandros dessas tecnologias de visualização nas quais estamos [imersos] que encontraremos metáforas e maneiras de [entender e intervir] nos padrões de objetificação no mundo, isto é, [nos] padrões de realidade pelos quais devemos ser responsáveis. Nessas metáforas, encontramos [meios para apreciar, tanto o aspecto concreto, “real”, quanto o aspecto de semiose e produção, daquilo que chamamos de] conhecimento científico. (Haraway 1995:30)

PROIBIR O TRUQUE-DE-DEUS

São propostas a respeito da vida das pessoas; a visão desde um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, [da simplicidade]. Só o [truque-de-deus] é proibido. (Haraway 1995:30)

o [“truque-de-deus”] de um paradigma Guerra nas Estrelas [de] conhecimento racional. (Haraway 1995:32)

SEXO/GÊNERO

Evelyn Keller […] insiste nas importantes possibilidades abertas pela construção da interseção [das distinções entre, sexo e gênero de um lado, e natureza e ciência de outro]. Ela insiste também na necessidade de mantermos algum substrato não discursivo para “sexo” e “natureza”, talvez o que estou chamando de “corpo” e “mundo”. (Haraway 1995:35 nota 16)

POLÍTICA e ÉTICA

Admita-se ou não, a política e a ética são a base das lutas a respeito de projetos de conhecimento nas ciências exatas, naturais, sociais e humanas. (Haraway 1995:28)

AGÊNCIA DOS OBJETOS E ÉTICA CIENTÍFICA

Saberes [situados] requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um [fundo], ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética [em sua agência e autoria singulares] de conhecimento “objetivo”. (Haraway 1995:36)

Um corolário da insistência de que a ética e a política, encoberta ou abertamente[,] oferecem as bases da objetividade nas ciências como um todo heterogêneo, e não apenas nas ciências sociais, é atribuir o estatuto de agente/ator aos “objetos” do mundo. […] [Descrições] de um mundo “real”, assim, não dependem da lógica da “descoberta”, mas de uma relação social de [“conversação”] carregada de poder. (Haraway 1995:37)

Talvez o mundo resista a ser reduzido a mero recurso porque é […] uma figura para o sempre [problemática], sempre [um vínculo potente entre corpos e sentidos]. A corporificação feminista, as esperanças feministas de parcialidade, objetividade e [saberes situados], [ativam] conversas e códigos neste potente nódulo [em] campos de corpos e [sentidos] possíveis. É aqui que a ciência, a fantasia científica e a ficção científica convergem na questão da objetividade [no] feminismo. Talvez nossas esperanças [para a] responsabilidade, [para a] política, [para o] ecofeminismo, estimulem uma revisão do mundo como um trickster codificador com o qual devemos aprender a conversar. (Haraway 1995:41)

CIÊNCIA e UTOPIA

A ciência foi utópica e visionária desde o início; esta é [uma as razões pelas quais] “nós” precisamos dela. (Haraway 1995:25)

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