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A perspectiva do vírus (Galloway e Thacker 2007)

A perspectiva do vírus (Galloway e Thacker 2007)

GALLOWAY, Alexander R.; THACKER, Eugene. 2007. The exploit: a theory of networks. Minneapolis: University of Minnesota Press.

Segue abaixo a tradução das principais passagens do livro ligadas a vírus, entre as páginas 82 e 91.

O objetivo para a resistência política em redes vitais deveria ser a descoberta de brechas [exploits] – melhor ainda seria a heurística inversa: procure por brechas, e você encontrará práticas políticas.

[…]

Em termos de compreensão reticular, uma das maiores lições dos vírus de computador e seus parentes (worms e cavalos de Tróia) é que, como vírus biológicos, eles exploram brechas no funcionamento normal de seus hospedeiros para produzirem mais cópias de si mesmos. Vírus são vida explorando a vida.

[…]

Ao contrário do que muitos pensam, nem todos os vírus de computador são destrutivos (o mesmo pode ser dito em biologia). Vírus de computador podem certamente deletar dados, mas podem também ser demonstrativos (e.g., demonstrar uma violação de segurança), exploradores (e.g., ganhar acesso), ou baseados no distúrbio em vez da destruição (e.g., re-roteando tráfego de rede, sobrecarregando a largura de banda da rede).

[…]

Vírus de computador prosperam em ambientes com baixa diversidade.

Onde houver monopólio tecnológico, haverão vírus. Eles se aproveitam da estandardização tecnológica para se propagarem pela rede. […] Vírus e worms exploram brechas, e nesse sentido são um bom índice para praticas reticulares oposicionistas. Eles propagam através de brechas na estrutura lógica do código de computador. Quando uma brecha é descoberta, a grande homogeneidade de redes computacionais permite ao vírus se propagar amplamente com relativa facilidade. Redes são, nesse sentido, um tipo de amplificador massivo para a ação. Algo pequeno pode se transformar em algo grande muito facilmente.

Basta possuir um computador para saber que a disputa entre os vírus e os antivírus muda diariamente; é um jogo de gato-e-rato. Novos vírus são constantemente reescritos e lançados, e novos pacotes e atualizações são constantemente carregadas em websites.

[…]

Vírus de quinta geração, ou vírus “polimórficos”, integram aspectos da vida artificial e são capazes de modificarem a si mesmos enquanto eles se replicam e propagam através das redes. Tais vírus contêm uma seção de código – uma “máquina de mutação” – cuja função é continuamente modificar o seu código de assinatura, desta forma escapando, ou ao menos confundindo, o programa antivírus. São, poderíamos dizer, exemplos de vida artificial.

Vírus como os vírus de computador polimórficos são definidos pela sua habilidade de replicar sua diferença. Eles exploram brechas na rede.

[…]

Vírus nunca são exatamente iguais. Este é um dos aspectos centrais e mais perturbadores dos vírus biológicos – sua habilidade de introduzirem mutações de maneira rápida e contínua em seus códigos genéticos. […] Essa habilidade permite ao vírus não apenas explorar organismos hospedeiros que anteriormente não lhe eram acessíveis, mas também cruzar sem esforço fronteiras entre espécies, por meio de organismos hospedeiros. Existe uma certa “animalidade” específica ao vírus biológico, já que age como um conector entre formas vivas, atravessando espécies, géneros, filos e reinos. No final do século XX e início do XXI, organizações públicas de saúde como a World Healt Organization (WHO) e os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) começaram a ver uma nova classe emergente de doenças, doenças causadas por micróbios com alta taxa de mutação e que eram capazes de se espalhar pelo mundo em questão de dias.

Essas “doenças infecciosas emergentes” são compostas por agregados de formas vivas: micróbio-pulga-macaco-humano, micróbio-galinha-humano, micróbio-vaca-humano, our humano-micróbio-humano. Em certo sentido, isso vale para qualquer epidemia: em meados do século XIV, a Peste Negra foi um conjunto de bacilo-pulga-rato-humano, uma rede de contágio parcialmente percorrida por navios de mercadorias ao longo de rotas de trocas.

Vírus biológicos são conectores que transgridem os sistemas de classificação e nomenclaturas que definimos como sendo o mundo natural ou as ciências da vida. Os efeitos dessa rede são, evidentemente, muito pouco desejáveis. Mas seria equivocado atribuir malícia e intencionalidade a uma cadeia de RNA e a um revestimento protéico [protein coating], mesmo que nós humanos insistamos incansavelmente em antropomorfizar os não-humanos com os quais interagimos. Qual é, então, a perspectiva do vírus? Talvez a microbiologia contemporânea possa nos dar uma pista, já que o estudo dos vírus na era da dupla hélice se tornou quase indistinguível da ciência da informação. Essa perspectiva do vírus não tem nada a ver com natureza, animais ou humanos; ela só diz respeito a operações sobre um código (neste caso, uma cadeia única de RNA) que tem dois efeitos – a cópia desse código dentro de um organismo hospedeiro, e a mutação desse código para ganhar acesso a uma célula hospedeira.

Replicação e criptografia são, portanto, as duas atividades que definem o vírus. O que importa não é se o hóspede é uma “bactéria”, um “animal” ou um “humano”, mas sim qual é o seu código – o número, ou numerologia, do animal.

Reiteramos que a perspectiva do vírus funciona por meio da replicação e da criptografia, uma conjunção de dois procedimentos. […] [O] tipo de criptografia envolvido é baseado na mutação e na morfologia, na recombinação e no recálculo como meios de nunca-ser-o-mesmo. A perspectiva do vírus é “criptográfica” pois ele replica essa diferença, esse status paradoxal de nunca-ser-o-mesmo. Sempre novamente, ele nunca é o mesmo. O que nos surpreende não é que o virus seja de alguma maneira “transgressivo”, cruzando fronteiras específicas (no caso de vírus biológicos) ou diferentes plataformas (no caso dos vírus de computador). A perspectiva do vírus, se de fato podemos compreender sua qualidade não-humana, não é qualquer pedaço de código rebelde ou intruso infiltrando “o sistema”. O que nos surpreende é que a perspectiva do vírus apresenta o ser animal e a vida criatural [creaturely life] de maneira ilegível e incalculável, como uma questão de cálculo telúrico [chthonic] e replicação oculta. Essa é a estranha numerologia do animal, que torna irrelevantes as fronteiras entre espécies.

[…]

Vírus são entidades que existem apenas em virtude da contínua replicação de diferença numérica.

[…]

Se os vírus são realmente definidos por sua habilidade para replicar sua diferença, podemos perguntar, o que permanece idêntico através das mudanças? Uma resposta é que o que permanece igual é a estrutura particular da mudança – permutações de código genético ou digital. Existe um devir-número específico aos vírus, biológicos ou computacionais, uma matemática ou combinatória na qual a própria transformação – via exploração sempre nova de brechas na rede – é a identidade do vírus.

Se vírus de computador é um fenômeno tecnológico envolto numa metáfora biológica, doenças infecciosas emergentes são um fenômeno biológico envolto num paradigma tecnológico. Assim como nos vírus de computador, doenças infecciosas emergentes constituem um exemplo de fenômeno de contra-protocolo.

Dessa forma, a epidemiologia se tornou um método apropriado para estudar vírus de computador. Doenças infecciosas emergentes dependem de, e usam, as mesmas propriedades topológicas que constituem as redes. A mesma coisa que dá à rede seu caráter distribuído, sua horizontalizada, é assim transformada em uma ferramenta para a destruição da rede.

Um exemplo é a identificação da Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS) em 2003. […] Muito mais do que uma rede biológica, a SARS une redes de transporte, institucionais e de comunicação (de maneiras que às vezes lembram um romance médico [a medical thriller novel]). Em novembro de 2002, os primeiros casos de SARS (então chamada de “pneumonia atípica”) apareceu na província de Guangdong, no sul da China. Em meados de fevereiro de 2003, a WHO e outras agências de saúde foram alertadas sobre um novo tipo de pneumonia saindo da China. O governo chinês relatou cerca de 300 casos, muitos na região da província de Guangdong. No final de fevereiro, um médico que havia cuidado de pacientes com pneumonia atípica em Guangdong retornou ao se hotel em Hong Kong. A rede biológica se cruzou com a rede de transporte. A WHO estima que esse médico havia, no trajeto, infectado pelo menos doze outras pessoas, que depois viajaram para o Vietnã, Canadá e EUA. Alguns dias depois, médicos de Hong Kong relataram os primeiros casos daquilo que eles começaram a chamar de “SARS”. Algumas semanas depois, em meados de março, agentes de saúde em Toronto, Manila e Singapura relataram os primeiros casos de SARS. Intermediando redes institucionais e de comunicação, a WHO emitiu uma advertência de viagem […], estimulando o controle da passagem em aeroportos para vôos de e para locais como Toronto e Hong Kong. Ao mesmo tempo, a WHO organizou uma teleconferência internacional entre agentes e administradores da área da saúde (incluindo a CDC), concordando em compartilhar informações relativas a casos de SARS. O carregamento de dados de pacientes ligados à SARS para a base de dados da WHO começou imediatamente. A rede profissional se mediou com [interfaced with] a rede institucional, se estendendo até a rede de computadores. Em meados de março, cientistas na CDC sugeriram que um novo [mutated] coronavirus (que causa a gripe comum em muitos mamíferos) pode estar ligada à SARS. Então, em 14 de abril, cientistas no Michael Smith Genome Sciences Centre, em Vancouver, sequenciaram o DNA do coronavirus SARS em seis dias (o que seria repetido por cientistas alguns dias depois). Em abril de 2003, a SARS continuou a dominar as manchetes dos noticiários, reiteradamente nas capas da Time, Newsweek e U.S. News.

Apesar da notável coordenação e cooperação via diferentes redes, no nível biológico a SARS continuava a transformar e a afetar essas mesmas redes. No início de abril de 2003, o governo dos EUA emitiu uma ordem executiva permitindo a quarentena de pessoas saudáveis suspeitas de estarem infectadas com SARS, mas que ainda não tinham sintomas. Entre março e abril de 2003, medidas de quarentena foram tomadas em Ontario, Hong Kong, Singapura e Beijing. Prédios residenciais, hospitais e espaços públicos como supermercados, cinemas e shopping centers foram todos isolados e sofreram quarentena. Pessoas de Toronto a Beijing foram vistas frequentemente usando máscaras cirúrgicas para evitar a infecção. No final de abril, o avanço da SARS parecia ter se estabilizado. Agentes da WHO afirmaram que os casos de SARS atingiram o pico no Canadá, Singapura, Hong Kong e Vietnam (mas não na China). Muitos países relataram um decréscimo no número de casos de SARS, apesar de nenhuma vacina ter sido desenvolvida. No final de maio de 2003, agentes de saúde dos EUA alertaram que o vírus SARS muito provavelmente reaparecerá na próxima estação de gripe.

Devemos imediatamente notar algo sobre a SARS como uma doença infecciosa emergente. Ela é, em primeiro lugar, um exemplo de rede biológica. Mas ela é também mais do que biológica.

SARS e outras doenças infecciosas emergentes são as novas virologias da globalização; o próprio sentido do termo “doença infecciosa emergente” implica isso. Doenças infecciosas emergentes são produtos da globalização. Isso pois elas são altamente dependentes de uma ou mais redes.

O coronavirus SARS usou três tipos de redes e as uniu em uma só: (1) a rede biológica de infecção (muitas vezes dentro de centros médicos); (2) a rede de transporte de aeroportos e hotéis; e (3) as redes de comunicação de notícias, websites, bases de dados e teleconferências internacionais. Sem uma rede de transporte, o vírus SARS poderia bem ter sido um fenômeno chinês localizado, nunca chegando tão longe quanto Toronto. E enquanto os relatos jornalísticos nos EUA serviram principalmente para educar um público preocupado, eles também serviram para aumentar a ansiedade de uma população já sensibilizada para o bioterrorismo. Mais importante ainda é, talvez, a maneira como o vírus SARS explorou essas redes até o seu esgotamento: prédios em quarentena, imposição de restrições a viagens aéreas, pessoas sendo realocadas ou isoladas.

Doenças infecciosas emergentes como a SARS não apenas operam simultaneamente através de diferentes redes, mas ao fazê-lo também transgridem algumas fronteiras. A lição aqui é que a flexibilidade e a robustez da rede são consonantes com a transgressão de fronteiras.

O vírus SARS, por exemplo, cruza as fronteiras das espécies quando pula de animais para humanos. Ele também cruza fronteiras nacionais em suas viagens entre China, Canadá, EUA e sudeste da Ásia. Ele cruza fronteiras econômicas, afetando a aviação comercial, o turismo e as indústrias de entretenimento, mas também oferecendo iniciativa e novos mercados para corporações farmacêuticas. Finalmente, ele cruza a fronteira entre a natureza e o artifício, ao juntar vírus, organismos, computadores, bases de dados e o desenvolvimento de vacinas. Sua tática é a inundação, um antigo antagonista da rede.

Mas redes biológicas como no caso da SARS não são limitadas apenas a doenças que poderiam ser entendidas como ocorrendo naturalmente. Seus efeitos de rede podem ser vistos em outro tipo de rede biológica – aquela do bioterrorismo.