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Cosmopolítica (Stengers 2018 [2007])

Cosmopolítica (Stengers 2018 [2007])

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STENGERS, Isabelle. 2018. A proposição cosmopolítica. (Trads.: Raquel Camargo; Stelio Marras) Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 69:442-64. [2007]

COSMOPOLÍTICA como PRÁTICA MINORITÁRIA (contra teoria generalizante)

Como apresentar uma proposição cujo desafio não é o de dizer o que ela é, nem de dizer o que ela deve ser, mas de fazer pensar; e que não requer outra verificação senão esta: a forma como ela terá “desacelerado” os raciocínios, [criado] a ocasião de uma sensibilidade um pouco diferente no que concerne aos problemas e situações que nos mobilizam? Como, portanto, separar essa proposição das questões de autoridade e de generalidade que se agenciam em torno da noção de “teoria”? Essa questão é ainda mais importante considerando que a proposição “cosmopolítica”, da maneira como eu tentarei caracterizá-la, não se destina em primeiro lugar aos “generalistas”. Ela apenas adquire sentido nas situações concretas, lá onde trabalham os praticantes; e ela requer praticantes que […] aprenderam a ser indiferentes às pretensões dos teóricos generalizantes, estes que tendem a definir aqueles como executantes, encarregados de “aplicar” uma teoria ou de capturar sua prática como ilustração de uma teoria. (Stengers 2018:443)

O IDIOTA DE DELEUZE

[O] idiota de Deleuze, que ele tomou de empréstimo de Dostoïevski para dele fazer uma personagem conceitual, é aquele que sempre desacelera os outros, aquele que resiste à maneira como a situação é apresentada, cujas urgências mobilizam o pensamento ou a ação. E resiste não porque a apresentação seja falsa, não porque as urgências sejam mentirosas, mas porque “há algo de mais importante”. Que não lhe perguntemos o quê. O idiota não responderá, ele não discutirá. O idiota faz presença, ou, como diria Whitehead, ele coloca um interstício. Não se trata de interrogá-lo: “o que é mais importante?”. “Ele não sabe.” Mas sua eficácia não está em desfazer os fundamentos dos saberes, em criar uma noite onde todas os gatos são pardos. Nós sabemos, existem saberes, mas o idiota pede que não nos precipitemos, que não nos sintamos autorizados a nos pensar detentores do significado daquilo que sabemos. (Stengers 2018:444)

DESACELERAR

Na maior parte do tempo, como todos e cada um, eu acredito que sei aquilo que sei. Mas essa palavra, cosmopolítica, me veio em um momento no qual a inquietude me tomava, quando eu tinha a necessidade de desacelerar face à possibilidade de que, com a maior das boas vontades, eu estivesse correndo o risco de reproduzir [isso que], desde que comecei a pensar, [aprendi ser o pequeno pecado] da tradição à qual pertenço: transformar em chave universal neutra, isto é, válida para todos, um tipo de prática da qual nós somos particularmente orgulhosos. (Stengers 2018:445)

IDIOTA ANTI-KANT

[O] atrativo kantiano pode induzir à ideia de que se trata de uma política visando a fazer existir um “cosmos”, um “bom mundo comum”. Ora, trata-se justamente de desacelerar a construção desse mundo comum, de criar um espaço de hesitação a respeito daquilo que fazemos quando dizemos “bom”. […] A proposição cosmopolítica é mesmo incapaz de dar uma “boa” definição dos procedimentos que permitem alcançar a “boa” definição de um “bom” mundo comum. Ela é “idiota” no sentido de que se dirige àqueles que pensam sob essa urgência, que ela não nega de forma alguma, mas vai sussurrando que, talvez, exista aí algo de mais importante. (Stengers 2018:446)

REGIME DE ENUNCIAÇÃO e INSTITUIÇÕES (Latour: empreitada distinta, mas preocupação comum – amoderna)

O regime de enunciação não permite julgar as instituições que correspondem a ele, não é o ideal ao qual algumas [instituições] se aproximariam mais que outras, ele propõe aproximá-las de acordo com um ângulo que coloca em cena sua irredutibilidade a todas as “razões gerais”, culturais, simbólicas ou sociais. Consideradas por esse ângulo, elas devem todas aparecer de forma “surpreendente”, de maneira tal que nós deixaríamos de nos surpreender com o fato de que “os outros” tenham se valido de instituições tão diferentes. Trata-se, então, de nos desenraizarmos de nós mesmos [dépayser] para que “os outros” deixem de ser exóticos aos nossos olhos. Uma tal abordagem deveria, se exitosa, descolar de maneira bastante radical o regime de enunciação política das práticas, instituições, ideais, controvérsias que nós associamos ao político, para que deixemos de nos apresentar como tendo inventado “o político”, e isso sem no entanto chegar à conclusão de que outros povos “faziam política sem saber” (posição tradicional que implica que nós os compreendemos melhor do que eles compreendem a si próprios). Essa empreitada, delicada e arriscada, deve ser concebida como distinta da proposição cosmopolítica, mas as duas estão unidas por uma relação de entreprovação recíproca, visto que compartilham uma preocupação comum: sair de maneira não trivial (pós-moderna) das narrativas do progresso que conduzem até “nós”. (Stengers 2018:446 nota 5)

COSMOS = DESCONHECIDO

O cosmos, tal qual ele figura nesse termo, cosmopolítico, designa o desconhecido que constitui esses mundos múltiplos, divergentes, articulações das quais eles poderiam se tornar capazes, contra a tentação de uma paz que se pretenderia final, ecumênica, no sentido de que uma transcendência teria o poder de requerer daquele que é divergente que se reconheça como uma expressão apenas particular do que constitui o ponto de convergência de todos. Não existe, enquanto tal, um representante, o idiota nada exige, não autoriza nenhum “e portanto…”. (Stengers 2018:447)

IGUALDADE (simetria, inquietude) =/= EQUIVALÊNCIA (substitutibilidade)

[O] cosmos é um operador de colocação em igualdade [mise à égalité], sob a condição de dissociar radicalmente entre colocação em igualdade e colocação em equivalência [mise en équivalence], que implica uma medida comum, implicando a intercambialidade de posições. Pois dessa igualdade não se desdobra nenhum “e portanto…” mas, bem ao contrário, o põe em suspensão. Operar, aqui, é criar uma colocação em inquietude [mise en inquiétude] das vozes políticas, um sentimento de que elas não definem aquilo que discutem; que a arena política está povoada pelas sombras do que não tem, não pode ter ou não quer ter voz política (Stengers 2018:447)

A PROPOSIÇÃO COSMOPOLÍTICA como A PASSAGEM DE UM PAVOR

A proposição cosmopolítica, portanto, nada tem a ver com um programa, mas, muito mais com a passagem de um pavor, que faz balbuciar as seguranças. É esse pavor que podemos escutar no grito, dizem, um dia entoado por Cromwell: “My Brethren, by the bowels of Christ I beseech you, bethink that you may be mistaken!”. Citar Crowell, aqui, esse tão brutal político, carrasco da Irlanda, se dirigindo aos seus irmãos puritanos, habitados por um verdade segura e vingativa, é insistir que esse balbuciamento não se merece, não traduz uma particular grandeza de alma, mas acontece. E acontece sob o modo da indeterminação, isto é, como um acontecimento ao qual nada se segue, nenhum “e portanto…”, mas coloca a cada um a questão sobre a maneira como se herdará algo disso. (Stengers 2018:447)

A PROPOSIÇÃO COSMOPOLÍTICA

Conferir uma dimensão “cosmopolítica” aos problemas que pensamos sob o modo da política não se refere ao registro das respostas, mas coloca a questão sobre a maneira como podem ser escutados “coletivamente”, no âmbito do agenciamento através do qual se propõe uma questão política, o grito de pavor ou o sussurro do idiota. […] Não se trata de se dirigir a eles, mas de agenciar o conjunto de maneira tal que o pensamento coletivo se construa “em presença” [disso cuja insistência] eles fazem existir. Dar a essa insistência um nome, cosmos, inventar a maneira mediante a qual a “política”, que é a nossa assinatura, poderia fazer existir seu “duplo cósmico” [doublure cosmique], as repercussões disso que vai ser decidido, disso que constrói suas razões legítimas, sobre isso que permanece surdo a essa legitimidade, eis a proposição cosmopolítica. (Stengers 2018:448)

MÉTODO e ECONOMIA PSÍQUICA DA PESQUISA CIENTÍFICA

Nós sabemos que nos laboratórios onde se pratica a experimentação animal existe todo tipo de rito, de maneira de falar, de designar os animais, o que testemunha a necessidade dos pesquisadores de se protegerem. Poderíamos, ademais, nos perguntar se as grandes evocações do progresso dos conhecimentos, da racionalidade, das necessidades do método, não fazem parte desses ritos, obstruindo os interstícios por onde insiste o “o que estou fazendo”. A necessidade de “decidir” quanto à legitimidade de uma experimentação teria então por correlato a invenção de restrições destinadas ativamente a essas manobras de proteção, forçando os pesquisadores implicados a se expor, a decidir “em presença” daquilo que será eventualmente vítima de sua decisão. A proposição vai então no sentido de uma “autorregulação”, mas ela tem por interesse colocar em cena a questão do “auto”, de dar a sua plena significação ao desconhecido da questão: o que decidiria o pesquisador “por ele mesmo” se esse “ele mesmo” estivesse ativamente despojado daquilo que as decisões atuais parecem ter necessidade. (Stengers 2018:449)
Em De l’angoisse à la méthode dans les sciences du comportement (Paris: Flammarion, 1980), Georges Devereux liga a importância do método nas “ciências do comportamento”, isto é, as ciências que se dirigem a seres que, eles próprios, se dirigem ao mundo, à necessidade de se proteger de uma angústia que o físico ou o químico não conhecem (“o que eu estou fazendo a ‘ele’?”). É por isso que o método, nessas ciências, acaba sempre, de uma maneira ou de outra, por rebaixar de forma insensata o observado (p. 80), mas também a “emburrecer” o pesquisador, que se apresentará como submisso ao método, tirando mérito das economias de pensamento e da sensibilidade que ele exige. (Stengers 2018:449 nota 6)

A PERSPECTIVA ETO-ECOLÓGICA e O CASO DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

Uma tal questão destaca uma perspectiva que chamo de “eto-ecológica” [étho-écologique], que afirma a inseparabilidade do éthos, da maneira de se comportar própria a um ser, e do oikos, do hábitat desse ser, da maneira que esse hábitat satisfaz ou contraria as exigências associadas a tal éthos, ou oferece aos novos éthos a oportunidade de se atualizarem. Quem diz inseparabilidade não diz dependência funcional. Um éthos não é uma função do seu meio ambiente, do seu oikos, ele sempre será o éthos do ser que se revela capaz dele. Nós não o transformaremos de modo previsível transformando o meio ambiente. Mas nenhum éthos é, em si mesmo, detentor da sua própria significação, mestre de suas razões. Nós não sabemos de que um ser é capaz, do que pode se tornar capaz. O meio ambiente, poderíamos dizer, propõe, mas é o ser que dispõe dessa proposição, que lhe dá ou lhe nega uma significação “etológica”. Nós não sabemos do que um pesquisador, afirmando hoje a legitimidade, mesmo a necessidade de determinada experimentação animal, poderia se tornar capaz em um oikos que lhe exige pensar “em presença” das vítimas de sua decisão. O que importa é que esse devir será aquele de um pesquisador, e é nesse devir que ele produziria um acontecimento e no qual aquilo que chamo de “cosmos” poderia ser nomeado. Localmente, no caso em que a exigência ecológica seria eficaz, uma articulação terá sido criada entre o que parecia se contradizer: as necessidades da pesquisa e suas consequências para os animais que são vítimas dela. Acontecimento “cósmico”. (Stengers 2018:449-50)

O CONSTRANGIMENTO do “IDIOTA”

Esse exemplo pode fazer sentir o motivo pelo qual eu enfatizei que o idiota não nega os saberes articulados, não os denuncia como mentira nem como a fonte escondida de um conhecimento que os transcende. Os constrangimentos [contraintes] propostos são “idiotas” nesse sentido: eles não designam um árbitro capaz de julgar a legitimidade das urgências que os experimentadores reivindicam, eles levam a sério, a título hipotético (isso pode não funcionar) o fato de que o éthos desses experimentadores, que é definido como problemático pelos adversários da experimentação animal, parece ter necessidade de um ambiente “asséptico”, e eles lhes negam o direito a tal ambiente: nós poderemos aceitar escutar os seus argumentos quando estivermos seguros de que vocês estão plenamente expostos às suas consequências. (Stengers 2018:450)

O PROBLEMA

[O] problema não é o dos saberes articulados, mas da pretensão que redobra esses saberes: aqueles que sabem se apresentam como pretendendo saber aquilo que sabem, como sendo capazes de conhecer de um modo independente de sua situação “ecológica”, independente do que o seu oikos lhes obriga a levar em conta, ou, ao contrário, lhes permite ignorar. (Stengers 2018:450)

TORNAR a GUERRA INTOLERÁVEL

[I]magine-se as repercussões se todos os sofrimentos e mutilações impostos pela guerra (econômica) fossem assim “celebrados”, rememorados, ativamente protegidos do esquecimento e da indiferença, e não anestesiados pelos temas da flexibilidade necessária, da ardente mobilização de todos por uma “sociedade de conhecimentos” onde cada um deverá aceitar a rápida obsolescência do que sabe e tomar para si a responsabilidade permanente de sua autorreciclagem. O fato de sermos tomados por uma guerra sem perspectiva concebível de paz se tornaria talvez intolerável. (Stengers 2018:450-1)

TAR

Eu gostaria agora de desdobrar a proposição cosmopolítica em associação com o tema da ecologia política, tal como permitem entrever os trabalhos de Bruno Latour (Politiques de la nature) ou de Michel Callon e seus coautores (Agir dans un monde incertain). […] A cultura ativa da incerteza, tal como a propõem notadamente Callon e seu coautores, já é um desafio formidável, e contudo, de maneira idiota, trata-se de complicar ainda mais a situação; de marcar o fato de que vivemos em um mundo perigoso e de levar em conta explicitamente esse perigos. (Stengers 2018:451)

FUNCIONÁRIOS para MATTERS OF CONCERN

Como diz Bruno Latour, trata-se de fazer com que a situação escape das razões autorizadas pelos matters of fact, como também dos valores dedutíveis de um “interesse geral” que permite a arbitragem. A situação deve ser produzida como matter of concern, o que significa que ela deve agrupar em [torno] de si aqueles que estão “implicados”. […] O que demandaria […] funcionários cuja grandeza seria a de manter uma posição de um “não saber radical” em relação ao que é do “interesse geral”, e cuja tarefa seria assegurar que toda proposição se apresente de um modo que a exponha efetivamente, o mais efetivamente possível, e que todos os objetores-proponentes tenham os meios de desdobrar plenamente a sua proposição? É toda a política de pesquisa pública que deveria, notadamente, ser revista. (Stengers 2018:451)

NEUTRALIDADE

Não se constituirá jamais memória ou experiência sob o signo de uma neutralidade metodológica. Isso não significa “abandonar a ciência”. Jamais teria existido ciência experimental se os pesquisadores no laboratório não estivessem apaixonadamente interessados pela diferença entre aquilo que “funciona”, que cria uma relação pertinente, que produz um saber que importa, que pode interessar, e uma observação metodologicamente impecável, mas que não é suscetível de criar qualquer diferença, qualquer consequência. (Stengers 2018:452)

TEORIA e SEUS REPRESENTANTES

[O] poder das teorias é o de definir cada situação como um simples caso, isto é, proibir aos seus representantes de serem obrigados a pensar, de serem colocados em risco por esse caso. A aposta eto-ecológica implica, portanto, que o “éthos” associado ao pesquisador incapaz de abandonar a posição de porta-voz de uma teoria (ou de um método) que supostamente faz dele um cientista, não é nem um pouco um problema grave e inultrapassável (do tipo: é isso ou recairemos ao nível da opinião). Trata-se de uma questão do meio. Esse éthos, no meio atual, permite fazer carreira, mas, se o meio muda de um modo que o transforma em uma deficiência risível, ele pode ser modificado. (Stengers 2018:452)

UTOPIA

A ecologia política se situa, pois, na perspectiva do que poderíamos chamar de uma “utopia”, […] indicando por onde poderia passar uma transformação que não deixe ninguém intacto, isto é, que coloque em questão todos os “teríamos apenas que…” que designam a simplista vitória dos bons contra os maus. (Stengers 2018:452-3)

EMPOWERMENT CAPITALISTA

“Nós temos o direito de nos beneficiarmos de nossa situação, nós reivindicamos que nos restituam a possibilidade de tirar plena vantagem dela”, eis o que se tornou o empowerment, e o mesmo destino espera, sem dúvida, qualquer outra possibilidade de pôr em causa a relação entre Estado e arbitragem em nome do interesse geral. (Stengers 2018:453)

VIVEMOS EM UM MUNDO PERIGOSO (Jamais fomos modernos – Galileu reticulador)

Nós vivemos em um mundo perigoso, e aqui podemos pensar na antiga análise de Joseph Needham [La science chinoise et l’Occident. Paris: Le Seuil, 1973] na qual ele se pergunta por que, na Europa, invenções técnicas que a China tinha absorvido podiam ser colocadas na origem do que chamamos de “revolução industrial”. Muitos diziam, e eu ainda escutei dizer recentemente: foi a física que fez a diferença, a grande descoberta da fecundidade das matemáticas para descrever o mundo. Needham não parou aí: como embriologista, ele sabia a que ponto essa fecundidade era limitada. Os trabalhos de Galileu ou Newton nada explicavam, mas o fato de que eles tenham podido “fazer evento” é que devia ser explicado. E a explicação que ele reteve foi a que coloca em cena a liberdade que então beneficiava os “empreendedores” europeus – aqueles que Latour mais tarde descreveu como ativando a construção de redes cada vez mais longas, a despeito de toda estabilidade ontológica, enlaçando sem hesitação os interesses humanos aos não humanos, cada vez mais numerosos e heteróclitos. Galileu é, de fato, um construtor de redes: seu conhecimento, no fim das contas, concernia primeiramente à forma como algumas esferas bastante lisas rolam ao longo de um plano inclinado, e esse conhecimento, somado às suas observações com a luneta, lhe permitiu acrescentar argumentos em apoio a uma hipótese astronômica; mas ele colocou tudo isso em comunicação direta com a grande questão da autoridade, dos direitos do conhecimento que se iniciam diante das tradições filosóficas e teológicas. E a sua condenação nada impediu na Europa esfacelada entre estados rivais, enquanto que, Império unificado que era a China, ele teria sido sem dúvida proibido de empreender. (Stengers 2018:453-4)

A MECÂNICA da RETICULAÇÃO CAPITALISTA

Os stakeholders, aqueles que possuem interesses em um novo empreendimento e que por ele se conectam, não devem ser limitados pelo que quer que seja exterior aos seus empreendimentos: o mundo emerge da multiplicidade de suas conexões heterogêneas, e essa emergência tem por única “mecânica” os entreimpedimentos que eles constituem uns para os outros. Nós sempre ressaltamos a ligação entre essa concepção da livre emergência, sem transcendência, com a mecânica. Os empreendedores (e um consumidor é igualmente um empreendedor) “compõem” à maneira de forças mecânicas, por adição; e a emergência não é outra coisa que a consequência dos obstáculos fatuais que eles constituem uns para os outros. Cada empreendedor é, então, movido por seus interesses bem definidos. Certamente, ele pode estar aberto a tudo aquilo que lhe permite avançar (ver os mecanismos de recrutamento descritos por Bruno Latour em La science en action). Mas o essencial é que ele seja o homem da “oportunidade”, surdo e cego à questão do mundo de cuja construção os seus esforços participam. Com efeito, é precisamente essa desconexão das escalas – aquelas dos indivíduos e aquela do que, juntos, eles fazem emergir – que permite a matematização do “mercado” como composição automática, maximizando uma função que os economistas escolherão assimilar ao bem coletivo. Toda intrusão em nome de um outro princípio de composição, mas também toda “escuta/acordo [entente]”, isto é, toda distância em relação à surdez, podem então ser colocados no mesmo saco: eles não serão descritos, mas condenados, pois todos têm o efeito de diminuir aquilo que o “livre mercado” maximiza (poder do teorema matemático). (Stengers 2018:454)

EMPREENDEDORISMO como PRINCÍPIO-DIREITO ou PROPOSIÇÃO?

[T]rata-se de opor aos empreendedores – definidos pelos seus interesses, por aquilo que os concerne – aqueles que “se envolvem com aquilo que não deveria concernir a ninguém”, aquilo que não deveria intervir na composição de forças. […] A questão, certamente, é política, e o direito de empreender permanece hoje, desse ponto de vista, como a primeira palavra. O princípio de precaução tende a limitar um pouco esse direito, mas ele o respeita antes de mais nada: para limitá-lo, é preciso estar em jogo a saúde humana ou os danos graves e/ ou irreversíveis ao meio ambiente. Não há, então, lugar para a questão dos shareholders: em que mundo queremos viver?, mas apenas desenvolvimento da possibilidade de uma posição defensiva. Certamente, a ideia de “sustentabilidade” vai mais longe, mas não nos surpreendamos que se trate apenas de uma ideia: a sua aplicação efetiva transformaria o “direito” de empreender em “proposição”, e implicaria que as ideias da ecologia política se tornassem realidade institucional. (Stengers 2018:455)

ORGANICISMO CAPITALISTA

Eu destaquei o caráter mecânico da emergência por composição dos interesses. Eu seguirei essa pista a fim de verificar se as ciências da natureza nos fornecem outros modelos de emergência sem transcendência. Certamente, o primeiro que se apresenta é o modelo biológico: a vida democrática poderia ser assimilada à harmoniosa participação de cada um em um corpo único… Velha ideia, muito sedutora, à qual convém, entretanto, resistir. (Stengers 2018:455)

COSMO-POLÍTICA

Se o “cosmos” pode nos proteger de uma versão “empreendedorista” da política, acolhendo apenas os interesses bem definidos, que têm os meios para se entreimpedir, nós vemos no momento que a política pode nos proteger de um cosmos misantropo, de um cosmos que se comunica diretamente com uma verdadeira oposição aos artifícios, hesitações, divergências, desmedidas, conflitos associados às desordens humanas. (Stengers 2018:456)

PENSAR = RESISTIR

Pensar o que emerge é resistir tanto à composição mecânica de forças indiferentes quanto à composição harmônica do que apenas encontra a sua verdade no fazer corpo. (Stengers 2018:456)

O MODELO QUÍMICO e a ORDEM DO MUNDO

Mas existe ainda um outro modelo de emergência, que não remete nem à física, ciência das leis que confirmou a palavra de ordem “obedecer à natureza para poder submetê-la”, nem à biologia, ciência dos modos de manter junto, da qual depende a vida ou a morte do corpo. Trata-se da arte dos químicos que compreendem isso com que estão lidando a partir [daquilo que isso tem o meio de os fazer fazer.] […] Falar da arte do químico é se voltar não para a química contemporânea, que frequentemente se pensa como uma espécie de “física aplicada”, mas para aquela química do século XVIII, que alguns pensadores das Luzes (notadamente Diderot, e certamente não Kant, que é muito mais o abajur dessa aventura das Luzes) opuseram ao modelo mecânico, ao ideal de uma definição teórica dos corpos químicos da qual se deveria deduzir o modo como eles entram em reação (esse “ideal” está longe de ser alcançado pela química contemporânea). Se existe arte, é porque os corpos químicos são definidos como “ativos”, mas sua atividade não pode ser atribuída a eles, ela depende das circunstâncias e pertence à arte dos químicos criar tipos de circunstâncias nos quais os corpos se tornarão capazes de produzir o que o químico deseja: arte de catálise, de ativação, de moderação. […] Se vocês lerem o bonito livro de François Jullien, La propension des choses, descobrirão uma arte de emergência bastante próxima daquela do químico. Com efeito, nesse livro se encontra descrito o modo como os chineses honram aquilo que menosprezamos, a manipulação, a arte da disposição que permite aproveitar-se da propensão das coisas, de “dobrá-las” de tal sorte que elas realizem “espontaneamente” o que o artista, o homem de guerra ou o homem político desejam. Fora da oposição entre submissão e liberdade, um pensamento centrado na eficácia. […] Dir-se-á que esse é um estranho modelo para o político, mas esse sentimento de estranheza traduz nossa ideia de que a “boa” política deveria encarnar uma forma de emancipação universal: removam a alienação que separava os humanos da sua liberdade e vocês obterão qualquer coisa parecida com uma democracia. A ideia de uma arte, mesmo de uma “técnica” política, é, portanto, anátema, artifício que separa o humano da sua verdade. Referir-se à arte do químico é afirmar que o encontro político não tem nada de espontâneo. O que chamamos de democracia ou é a forma menos ruim de gerir o rebanho humano ou é uma aposta centrada na questão não do que são os humanos, mas do que eles podem se tornar capazes. É a questão que John Dewey colocou no centro da sua vida: como “favorecer”, “cultivar” os hábitos democráticos? […] A questão é “eto-ecológica”: qual oikos pode dar lugar à emergência do que seria capaz de [“fazer importar” o que não pode se impor na conta]? (Stengers 2018:456-7)

ACONTECIMENTO e DISPOSITIVO

É o alcance da explicação que se encontra transformado, articulado ao registro da arte e não da dedução. Não se explica um acontecimento [événement], mas o acontecimento se explica a partir daquilo que terá sabido nele criar um lugar. E uma tal arte me parece operar nos dispositivos que são facilmente desqualificados como supersticiosos, porque eles parecem convocar uma transcendência. […] Eu penso principalmente naquilo que pude aprender com o dispositivo do “discurso” [palabre; debate, discussão] e com a maneira com que ele faz intervir o que eu chamaria, em poucas palavras, a ordem do mundo. O que há de muito interessante é que esse dispositivo ritual, que parece supor a existência de uma ordem do mundo que dará a sua justa solução a uma situação problemática, não confere qualquer autoridade a essa ordem. Se existe um discurso [palabre], é porque aqueles que se reúnem, aqueles que são reconhecidos como sabendo de alguma coisa dessa ordem não sabem, nesse caso específico, como ela vai se passar. Se eles estão reunidos, é por conta de uma situação em relação à qual nenhum de seus saberes é suficiente. Portanto, a ordem do mundo não é um argumento, ela é aquilo que confere aos participantes um papel que os “des-psicologiza”, que faz com que eles não se apresentem como “proprietários” das suas opiniões, mas como aqueles que se encontram todos igualmente habilitados a testemunhar que o mundo possui uma ordem. (Stengers 2018:457-8)

COSMOPOLÍTICA QUÍMICA

Do ponto de vista dos saberes dos antigos químicos, o fato de que o discurso [palabre; debate, discussão] não pede aos protagonistas que decidam, mas que determinem como se passa aqui a ordem do mundo, confere a essa ordem um papel que seria aquele do ácido que desagrega os corpos e lhes permite entrar em proximidade, e também do fogo que os ativa. Em poucas palavras, pode-se caracterizar a ordem do mundo em termos de eficácia: ela constrange cada um a se produzir, a fabricar-se a si mesmo, a partir de um modo que confere ao problema em torno do qual eles se reúnem o poder de gerar pensamento, um pensamento que não pertencerá a ninguém e a ninguém dará razão. (Stengers 2018:458)

MAGIA

Para as bruxas, nomear-se bruxas e definir a sua arte por essa palavra, “magia”, já são atos “mágicos”, que criam uma experiência desconfortável para todos aqueles que vivem em um mundo onde supostamente a página foi definitivamente virada, com a erradicação de tudo que foi desqualificado, menosprezado, destruído, enquanto triunfava o ideal de uma racionalidade pública, de um homem idealmente mestre de suas razões, logo acompanhado da trivialidade da psicologia dita científica com suas pretensões de identificar aquilo a que as razões humanas obedecem. Ousar nomear de “magia” a arte de suscitar os acontecimentos nos quais está em jogo um “tornar-se capaz” é aceitar que se deixe ecoar em nós um grito que pode lembrar aquele de Cromwell: o que fizemos, o que continuamos fazendo quando utilizamos palavras que nos fazem os herdeiros daqueles que erradicaram as bruxas. (Stengers 2018:458)

CONVOCAÇÃO (eficácia do ritual – empowerment)

A magia que as bruxas ativistas americanas cultivaram no domínio político é uma arte experimental cuja pedra de toque é um êxito indeterminado quanto ao seu conteúdo. Com efeito, essa arte mantém algo daquilo que poderíamos chamar de convocação: o ritual aí chama a uma presença, mas aquilo que é convocado – o que as bruxas chamam de deusa – não diz (não mais que o Cristo de Cromwell) o que é preciso fazer, não dá resposta à decisão que tomar, não entrega qualquer visão “profética”. A sua eficácia é bem antes aquela de catalisar um regime de pensamento e de sentir que confere àquilo que importa, àquilo em torno do que se dá a reunião, o poder de se tornar causa de pensamento. A eficácia do ritual não é, portanto, a convocação de uma deusa que inspiraria a resposta, mas a convocação daquilo cuja presença transforma as relações que cada protagonista entretém com os seus próprios saberes, esperanças, medos, memórias, e permite ao conjunto fazer emergir o que cada um, separadamente, não teria sido capaz de produzir. Empowerment, produção graças ao coletivo, de partes capazes daquilo que elas não teriam sido capazes sem ele. Arte de imanência radical, mas a imanência é precisamente aquilo que está para se criar, sendo o regime usual de pensamento aquele da transcendência que autoriza posição e julgamento. (Stengers 2018:458-9)

VÍRUS ou INUNDAÇÃO

A ecologia política afirma que não existe conhecimento que seja ao mesmo tempo pertinente e separado [détaché]: não é de uma “definição objetiva”, de um vírus ou de uma inundação que podemos ter necessidade, mas daqueles cujas práticas foram engajadas de modos múltiplos “com” esse vírus ou “com” esse rio. Mas cabe à perspectiva cosmopolítica colocar a questão da eficácia, que poderia estar associada ao “não existe” da ecologia política, e de conceber a cena política a partir dessa questão. Como o processo de emergência da decisão política pode, ao mesmo tempo, ser ativamente protegido da ficção segundo a qual “os seres humanos de boa vontade decidem em nome do interesse geral”, e ativado pela obrigação de colocar o problema associado ao vírus ou ao rio “em presença” daquele que, do contrário, correria o risco de ser desqualificado como “interesse egoísta”, nada tendo a propor e criando um obstáculo à “conta comum” em formação? (Stengers 2018:459)

O PAPEL

Papéis foram criados [expert e diplomata], cujos constrangimentos criam as salvaguardas que protegem a emergência dos tipos de entendido e mal-entendido “espontâneos” que dominam nossas reuniões de “boa vontade”. É essa noção de papéis heterogêneos que eu vou prolongar. […] O artifício que constitui o papel a ser sustentado faz existir o heterogêneo contra a tão poderosa tentação de tomadas de posição em nome do que autoriza a conta comum (interesse geral, racionalidade, progresso etc.). Um tal papel não é uma mentira, exceto quando nos lembramos que todo mentiroso é transformado pela sua mentira. Há uma eficácia própria ao papel, que os comediantes conhecem bem: o papel não é apenas sustentado, ele “sustenta” aquele que o endossa. (Stengers 2018:460)

O DINHEIRO e a DÍVIDA

Tudo terminará talvez com o dinheiro, mas não “pelo” dinheiro, pois o dinheiro não fecha a conta. Aqueles que se reúnem devem saber que nada poderá apagar a dívida que liga sua eventual decisão às suas vítimas. (Stengers 2018:462)

IGUALDADE (presença) = EQUIVALÊNCIA (representação)

Eu apresentei, no início deste texto, o “cosmos” como um operador de igualdade por oposição a toda noção de equivalência. […] A igualdade não significa que todos possuem “igualmente o mesmo direito de voz”, mas que todos devem estar presentes de um modo que confira à decisão o seu grau máximo de dificuldade, que proíba qualquer atalho, qualquer simplificação, qualquer diferenciação a priori entre aquilo que conta e aquilo que não conta. O cosmos, tal como ele figura na proposição cosmopolítica, não possui representante, ninguém fala em seu nome e ele não pode ser feito objeto de nenhum procedimento de consulta. O seu modo de existência se traduz pelo conjunto dos modos de fazer, dos artifícios cuja eficácia é a de expor aqueles que terão que decidir, de constrangê-los a esse pavor que eu associei ao grito de Cromwell [“My Brethren, by the bowels of Christ I beseech you, bethink that you may be mistaken!”]. Em resumo, trata-se de abrir a possibilidade de que ao murmúrio do idiota se responda não, por certo, com a definição “daquilo que há de mais importante”, mas com a desaceleração sem a qual não pode haver criação. (Stengers 2018:462-3)

CIVILIZAR a NEUTRALIDADE

Eu ressaltei que a proposição cosmopolítica não é uma proposição vale-tudo, aquela que “nós” poderíamos apresentar a todos como igualmente aceitável por todos. Ela é muito mais uma maneira de civilizar, de tornar “apresentável” essa política que temos, um pouco exageradamente, a tendência de pensar como um ideal neutro, bom para todos. (Stengers 2018:463)

O MURMÚRIO DO IDIOTA CÓSMICO COLOCA EM SUSPENSO

É preciso ousar dizer que o murmúrio do idiota cósmico é indiferente ao argumento da urgência como a qualquer outro. Ele não o nega, ele apenas coloca em suspenso os “e portanto…” dos quais nós, tão plenos de boa vontade, tão empreendedores, sempre prontos a falar por todos, somos os mestres. (Stengers 2018:464)

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