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O sociomorfismo elementar das classificações (Durkheim e Mauss 2001 [1902])

O sociomorfismo elementar das classificações (Durkheim e Mauss 2001 [1902])

DURKHEIM, Émile; MAUSS, Marcel. 2001. Algumas formas primitivas de classificação. In: Marcel Mauss. Ensaios de sociologia. (Trad.: Luiz J. Gaio; J. Guinsburg) São Paulo: Perspectiva, pp.399-455. [1902]

MOTE

CONTRIBUIÇÕES PARA O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES COLETIVAS (Durkheim e Mauss 2001:399)

A IDEIA DE

ver nos métodos do pensamento científico verdadeiras instituições sociais cuja gênese só a sociologia pode descrever e explicar (Durkheim e Mauss 2001:400)

ARISTÓTELES

Existe, no fundo de nossa concepção da classe, a ideia de uma circunscrição de contornos fixos e definidos. Ora, poder-se-ia quase dizer que esta concepção da classificação não vai além de Aristóteles. (Durkheim e Mauss 2001:400)

PRÉ-HISTÓRIA DA CLASSIFICAÇÃO

Não somente nossa noção atual de classificação tem uma história, mas esta mesma história supõe uma considerável pré-história. (Durkheim e Mauss 2001:400)

SUPERAÇÃO EUROPEIA DA CONFUSÃO PRIMITIVA

Contudo, esta mentalidade não subsiste mais, hoje, nas sociedades europeias, a não ser em estado de sobrevivência e, mesmo sob esta forma, só é encontrada em certas funções, claramente localizadas, do pensamento coletivo. (Durkheim e Mauss 2001:401)

CONFUSÃO MENTAL GENERALIZADA e DE BOA FÉ

É de boa fé que um bororo imagina ser uma arara; ao menos, se não deve assumir sua forma característica a não ser depois da morte, já a partir desta vida ele é para o animal aquilo que a lagarta é para a borboleta. É de boa fé que os Trumai são tidos como animais aquáticos. […] Os animais, os homens, os objetos inanimados foram quase sempre concebidos na origem como mantendo entre si relações da mais perfeita identidade. […] De resto, tal estado mental não difere mui sensivelmente daquele que, ainda agora, em cada geração, serve de ponto de partida para o desenvolvimento individual. […] Isto está à direita e isto está à esquerda, isto é do passado e isto é do presente, isto se parece com aquilo, isto acompanhou aquilo, eis mais ou menos tudo o que poderia produzir mesmo o espírito adulto, se a educação não viesse inculcar-lhe maneiras de pensar que jamais poderia ter instaurado por suas próprias forças e que são o fruto de todo o desenvolvimento histórico. (Durkheim e Mauss 2001:402)

CLASSIFICAR NÃO É NATURAL

Bem longe, pois, de o homem classificar espontaneamente e por uma espécie de necessidade natural, no início faltam à humanidade as condições mais indispensáveis da função classificadora. (Durkheim e Mauss 2001:402)

Longe de podermos admitir como coisa fundada que os homens classifiquem naturalmente, por uma espécie de necessidade interna de seu entendimento individual, cumpre, ao contrário, interrogar-se sobre o que os levou a dispor suas ideias sob esta forma e onde puderam encontrar o plano desta notável disposição. (Durkheim e Mauss 2001:403)

CLASSIFICAR é RELACIONAR

[C]lassificar, não é apenas constituir grupos: é dispor estes grupos segundo relações muito especiais. Nós os representamos como coordenados ou subordinados uns aos outros, dizemos que estes (as espécies) estão incluídos naqueles (os gêneros), que os segundos agrupam os primeiros. Há os que dominam, outros que são dominados, outros que são independentes entre si. Toda classificação implica uma ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível nem nossa consciência nos oferecem o modelo. Deve-se, pois, perguntar onde fomos procurá-lo. As próprias expressões de que nos servimos para caracterizá-lo nos autorizam a presumir que todas estas noções lógicas são de origem extralógica. Dizemos que as espécies de um mesmo gênero mantêm relações de parentesco; designamos certas classes com o nome de famílias; o próprio termo gênero não designava primitivamente um grupo familial (γένος)? (Durkheim e Mauss 2001:403)

I

O MUNDO É CLASSIFICADO A PARTIR DE CLASSIFICAÇÕES SOCIAIS

Cada tribo é dividida em duas grandes secções fundamentais designadas pelo termo fratrias. Cada fratria, por seu turno, compreende um número de clãs, isto é, grupos de indivíduos portadores do mesmo totem. […] Além desta divisão em clãs, cada fratria é dividida em duas classes que chamamos matrimoniais. […] Ora, a classificação das coisas [re]produz esta classificação dos homens. (Durkheim e Mauss 2001:404-5)

Já o Sr. Cameron [“Notes on some tribes of New South Wales”, J.A.I., XIV, p.350] havia observado que, entre os Ta-ta-this “todas as coisas do universo são divididas entre os diversos membros da tribo”. “Uns, diz, atribuem-se as árvores, alguns outros as planícies, outros os céu, o vento, a chuva e assim por diante”. (Durkheim e Mauss 2001:405)

”Toda a natureza, diz ele [Sr. Palmer. “Notes on some Australian tribes”. J.A.I., XIII, p.300, cf. p.248], é repartid[a] segundo os nomes das fratrias. As coisas são divididas em machos e fêmeas. O sol, a lua e as estrelas são homens e mulheres e pertencem a tal ou tal fratria, assim como os próprios negros”. (Durkheim e Mauss 2001:405)

[A] divisão das fratrias é considerada “como uma lei universal da natureza”. “Todas as coisas, animadas e inanimadas, diz Curr [Australian race, III, p.43], segundo o Sr. Bridgmann, são divididas por estas tribos em duas classes chamadas Yungaroo e Wootaroo”. “Dividem as coisas entre si, refere a mesma testemunha (Br. Smyth [The aborigines of Victoria (1887), vol.I, p.91]). Dizem que os jacarés são yungaroo e que os cangurus são wootaroo. O sol é yungaroo, a lua wootaroo, e assim por diante para as constelações, as árvores, as plantas, etc.”. E Fison [Fison e Howitt, Kamilaroi and Kurnai, p.168]: “Tudo na natureza reparte-se, segundo eles, entre as duas fratrias. O vento pertence a uma, a chuva a outra . . . Se os interrogarmos sobre determinada estrela em particular, dirão a que divisão (fratria) pertence”. (Durkheim e Mauss 2001:405-6)

COMPLEXIDADE

Tal classificação é de extrema simplicidade visto ser simplesmente bipartida. Todas as coisas são ordenadas em duas categorias que correspondem às duas fratrias. O sistema torna-se mais complexo quando não há somente a divisão em fratrias, mas também em quatro classes matrimoniais que serve de quadro para a distribuição dos seres. (Durkheim e Mauss 2001:406)

Efetivamente, a fratria é o gênero, a classe matrimonial é a espécie; ora, o nome do gênero convém à espécie, o que não significa que a espécie não tenha o seu próprio. Da mesma forma como o gato pertence à classe quadrúpede e pode ser designado por este nome, as coisas da espécie cargila dependem do gênero superior malera (fratria) e podem, por conseguinte, ser chamadas elas mesmas malera. É a prova de que não estamos diante de uma simples dicotomia das coisas em dois gêneros opostos, mas, em cada um destes gêneros, diante de uma verdadeira inclusão de conceitos hierarquizados. (Durkheim e Mauss 2001:407)

CLASSIFICAÇÃO GERAL

A importância desta classificação é tal que se estende a todos os fatos da vida; encontra-se sua marca em todos os principais ritos. […] A mesma organização de ideias serve de base às previsões; é tomada como premissa para interpretar os sonhos, para determinar as causas, para definir as responsabilidades. (Durkheim e Mauss 2001:407-8)

INFORMAÇÃO PRIMEIRA?

Esta ordem lógica é tão rígida, o poder coercitivo destas categorias sobre o espírito do australiano é tão poderoso que em certos casos, vê-se todo um conjunto de atos, de sinais, de coisas ser disposto segundo tais princípios. Quando deve ocorrer uma cerimônia de iniciação, o grupo local que toma a iniciativa de convocar os outros grupos locais pertence ao mesmo clã totêmico, adverte-os enviando-lhes “um bastão de mensagem” que deve pertencer à mesma fratria do remetente e do portador [Howitt, “On some australian ceremonies of initiation”, J.A.I., XIII, p.438, n.2. Cf. J.A.I., XVIII, prancha XIV, fig.13.]. […] Mas a mesma regra se aplica às mensagens destinadas a marcar um encontro de classe e, aqui, o remetente, o destinatário, o mensageiro, a madeira da mensagem, a caça designada, a cor de que é pintada, tudo se harmoniza rigorosamente de acordo com o princípio estabelecido pela classificação [Howitt, “Austral. message sticks”, J.A.I., XVIII, p.326; J.A.I., XVIII, prancha XIV, fig.16, 25, 136.]. […] Assim, tudo se segue aqui à maneira de um teorema: o remetente, o destinatário, o objeto e a escritura da mensagem, a madeira empregada, são todos aparentados. Todas estas noções parecem ao primitivo serem comandadas e se implicarem com necessidade lógica. (Durkheim e Mauss 2001:408-9)

TOTEMISMO

Outro sistema de classificação, mais completo e talvez mais característico é aquele em que as coisas são repartidas não mais em fratrias e em classes matrimoniais, mas em fratrias e em clãs ou totens. […] “Os totens australianos, diz Fison, têm cada um seu valor próprio. Alguns repartem não somente a humanidade, mas todo o universo naquilo que se pode chamar de divisões gentílicas. [Kamilaroi and Kurnai, p.168] […] Há para isto uma razão muito simples. É que, se o totemismo é, de um lado, o agrupamento dos homens em clãs de acordo com os objetos naturais (espécies totêmicas associadas), é também, inversamente, um agrupamento dos objetos naturais segundo os agrupamentos sociais. (Durkheim e Mauss 2001:409)

NÓS x ELES

As divisões sociais aplicadas à massa primitiva das representações puderam sem dúvida estabelecer um certo número de quadros delimitados, mas o interior destes quadros permaneceu num estado relativamente amorfo que dá mostras da lentidão e da dificuldade com a qual se estabeleceu a função classificadora. (Durkheim e Mauss 2001:411)

II

CLASSIFICAÇÃO e PODER

Onde quer que se veja um clã ou uma confraria religiosa exercer poderes mágico-religiosos sobre espécies de coisas diferentes, é legítimo perguntar-se se não existe aí o indício de uma antiga classificação que atribui a este grupo social estas diferentes espécies de seres. (Durkheim e Mauss 2001:417 nota 76)

MANIFESTO/TRANSFORMADO; ASSOCIAÇÃO/DISSOCIAÇÃO

[E]m muitos casos em que tais classificações não são mais imediatamente manifest[a]s, não se deixa de reencontrá-las, mas sob uma forma diferente daquela que acabamos de descrever. Sobrevieram mudanças na estrutura social, que alteraram a economia destes sistemas, mas não até o ponto de torná-la completamente irreconhecível. Aliás, tais mudanças são em parte devidas a estas mesmas classificações que poderiam ser suficientes para manifestá-las. […] O que caracteriza estas últimas é que as ideias são aí organizadas segundo um modelo fornecido pela sociedade. Mas uma vez que a organização da mentalidade coletiva existe, é susceptível de reagir sobre sua causa e contribuir para modificá-la. Vimos como as espécies de coisas, classificadas num clã, servem de totens secundários ou subtotens; isto significa que, no interior do clã, tal ou tal grupo particular de indivíduos, sob a influência de causas que ignoramos, acaba por sentir-se mais especialmente relacionado com tais ou tais coisas que são atribuídas, de modo geral, ao clã inteiro. Se agora este, já demasiado volumoso, tender a segmentar-se, a segmentação em apreço se fará segundo as linhas marcadas pela classificação. Não se deve crer, com efeito, que estas secessões sejam necessariamente o produto de movimentos revolucionários e tumultuosos. No mais das vezes parece que ocorreram segundo um processo perfeitamente lógico. Assim foi que, em grande número de casos, as fratrias se constituíram e se dividiram. […] Efetivamente, o subclã que assim se emancipou leva consigo, em seu domínio ideal, além da coisa que lhe serve de totem algumas outras tidas como solidárias da primeira. Estas coisas, no novo clã, desempenham o papel de subtotens, e podem, se for o caso, tornar-se outros tantos centros em torno dos quais mais tarde se produzirão novas segmentações. (Durkheim e Mauss 2001:418-9)

Enquanto os subclãs, saídos de um mesmo clã originário, conservam a lembrança de sua origem comum eles sentem que são parentes, associados, que não são mais do que partes de um mesmo todo; por conseguinte, seus totens e as coisas classificadas sob estes mesmos totens continuam subordinados, de certa forma, ao totem comum do clã total. Mas, com o tempo, tal sentimento se apaga. A independência de cada secção aumenta e acaba por converter-se em autonomia completa. Os vínculos que uniam todos estes clãs e subclãs numa mesma fratria se distendem ainda mais facilmente e toda a sociedade acaba por dissolver-se numa poeira de pequenos grupos autônomos, iguais entre si, sem subordinação alguma. Naturalmente, a classificação se modifica como consequência. As espécies de coisas atribuídas a cada uma dessas subdivisões constituem outros tantos gêneros separados, situados no mesmo plano. Toda a hierarquia desapareceu. […] [C]ada subtotem acabará por ser elevado à dignidade de totem, cada espécie, cada variedade subordinada ter-se-á tornado um gênero principal. Então, a antiga classificação terá dado lugar à simples divisão sem nenhuma organização interna, a uma repartição das coisas por cabeças, e não mais por troncos. Mas, ao mesmo tempo, como se faz em um número considerável de grupos, acabará incluindo quase o universo inteiro. […] É neste estado que se encontra a sociedade dos Aruntas [Spender e Gillen]. (Durkheim e Mauss 2001:420-1)

EVOLUCIONISMO

Há, portanto, um vínculo estreito, e não uma relação acidental, entre este sistema social [totemismo australiano] e este sistema lógico [classificação em gênero, espécie, classe etc]. Veremos agora como, a esta forma primitiva de classificação, e possível ligar outras que apresentam um grau mais alto de complexidade. (Durkheim e Mauss 2001:425)

III

MITO-SOCIOLÓGICA

Entre eles [os Zuñis], a noção que a sociedade tem de si mesma e a representação que ela faz do mundo se acham totalmente entrelaçadas e confundidas, de modo que se pôde justamente qualificar sua organização de “mito-sociológica” [Cushing, “Zuñi creation myths”, p.367 e passim]. (Durkheim e Mauss 2001:425)

Com efeito, encontramos entre os Zuñis um verdadeiro arranjo do universo. Todos os seres e todos os fatos da natureza, “o sol, a lua, as estrelas, o céu, a terra e o mar com todos os seus fenômenos e todos os seus elementos, os seres inanimados como também as plantas, os animais e os homens” são classificados, rotulados, colocados num lugar determinado no “sistema” único e solidário e cujas partes são todas coordenadas e subordinadas umas às outras segundo os graus de parentesco” [Cushing]. (Durkheim e Mauss 2001:426)

Não só a divisão das coisas por regiões e a divisão da sociedade por clãs se correspondem exatamente, mas elas são inextricavelmente entrelaçadas e confundidas. Tanto se pode dizer que as coisas são classificadas ao Norte, ao Sul, etc., como dizer que são classificadas nos clãs do Norte, do Sul, etc. (Durkheim e Mauss 2001:428-9)

EVOLUCIONISMO (australianos=>americanos)

É permitido, pois, crer, de acordo com aquilo que precede, que o sistema dos Zuñis é na realidade um desenvolvimento e uma complicação do sistema australiano. (Durkheim e Mauss 2001:433)

PRIMEIRO AS AGÊNCIAS DO MUNDO SÃO ASSOCIADAS AOS GRUPOS, DEPOIS SÃO ASSOCIADAS AO ESPAÇO A PARTIR DA ESPACIALIZAÇÃO DOS GRUPOS

As coisas foram, em primeiro lugar, classificadas em clãs e em totens. Mas [a] […] localização estrita dos clãs […] acarretou forçosamente uma localização correspondente das coisas atribuídas aos clãs. […] Por conseguinte, se o campo for orientado de um modo definido, todas as suas partes serão orientadas automaticamente com tudo aquilo que abrangem, coisas e pessoas. Em outras palavras, todos os seres da natureza doravante serão concebidos como mantendo relações determinadas com porções igualmente determinadas do espaço. Sem dúvida, somente o espaço tribal é assim dividido e repartido. Mas do mesmo modo como a tribo constitui para o primitivo toda a humanidade e o fundador da tribo é o pai e o criador dos homens, assim também a ideia do campo confunde-se com a ideia do mundo [Nota 191: Encontram-se ainda em Roma vestígios destas ideias: mundus significa, ao mesmo tempo, o mundo e o lugar onde se reuniam os comícios. A identificação da tribo (ou da cidade) e da humanidade não é, pois, devida simplesmente à exaltação do orgulho nacional, mas a um conjunto de concepções que fazem da tribo o microcosmo do universo]. O acampamento é o centro do universo e todo o universo está aí em miniatura. Portanto, o espaço mundial e o espaço tribal só se distinguem de maneira imperfeita e o espírito passa de um ao outro sem dificuldade, quase sem ter consciência disso. […] [F]oi por intermédio dos totens que as coisas foram ligadas às regiões. […] Mas se os grupos totêmicos, tão curiosamente hierarquizados, se desvanescessem e fossem substituídos por grupos locais, simplesmente justapostos uns aos outros e na medida em que o fossem, a classificação por origens seria doravante a única possível. (Durkheim e Mauss 2001:440-1)

REPRESENTAÇÕES SOCIOMÓRFICAS

Assim, os dois tipos de classificação que acabamos de estudar [Arunta e Zuñi] nada mais fazem senão exprimir, sob diferentes aspectos, as próprias sociedades no seio das quais elas foram elaboradas: a primeira era modelada de acordo com a organização jurídica e religiosa da tribo, a segundo segundo a organização morfológica. Quando se tratou de estabelecer laços de parentesco entre as coisas, de constituir famílias sempre mais vastas de seres e de fenômenos, procedeu-se com a ajuda das noções que a família, o clã, a fratria forneciam e partiu-se dos mitos totêmicos. Quando se tratou de estabelecer relações entre os espaços, as relações espaciais que os homens mantêm no interior da sociedade é que serviram de ponto de referência. Aqui, o quadro foi fornecido pelo próprio clã, lá, pela marca material que o clã pôs sobre o solo. Mas ambos os quadros são de origem social. (Durkheim e Mauss 2001:441-2)

IV

O CASO CHINÊS

Resta-nos agora descrever, ao menos em seus princípios, o último tipo de classificação que apresenta todos os caracteres essenciais daqueles que precedem, salvo o fato de ser, desde que foi conhecido, independente de toda a organização social. O melhor caso do gênero, o mais notável e o mais instrutivo, é-nos oferecido pelo sistema divinatório astronômico, astrológico, geomântico e horoscópico dos chineses. […] [E]le exprime o “tao”, isto é, a natureza. Está na base de toda a filosofia e de todo o culto que vulgarmente se chama taoísmo. Em suma, rege todos os pormenores da vida no mais imenso agrupamento que a humanidade jamais conheceu. (Durkheim e Mauss 2001:442)

TEMPO/ESPAÇO

Em todos os sistemas de pensamento de que acabamos de falar, a consideração dos tempos é paralela à dos espaços. (Durkheim e Mauss 2001:444)

Tal classificação dos espaços, dos tempos, das coisas, das espécies animais domina toda a vida chinesa É o próprio princípio da famosa doutrina do fung-shui (Durkheim e Mauss 2001:446)

O CASO GREGO

A atribuição dos elementos, dos metais aos planetas é um fato grego, talvez caldeu, tanto quanto chinês. (Durkheim e Mauss 2001:447-8)

COSMOS-CORPO

teoria do microcosmo (Durkheim e Mauss 2001:448)

ADIVINHAÇÃO e CLASSIFICAÇÃO

Nada, aliás é mais natural do que a relação assim constatada entre a adivinhação e as classificações das coisas. Todo rito divinatório, por mais simples que seja, baseia-se numa simpatia prévia entre certos seres, num parentesco tradicionalmente admitido entre determinado sinal e determinado acontecimento futuro. […] Existe assim, na base do sistema de adivinhação, um sistema ao menos implícito, de classificação. (Durkheim e Mauss 2001:448)

MITOLOGIA

Cada mitologia é, no fundo, uma classificação, mas que haure seus princípios das crenças religiosas, e não das noções científicas. (Durkheim e Mauss 2001:448-9)

Poder-se-ia quase dizer que as classificações mitológicas, quando são completas e sistemáticas, quando abraçam o universo, anunciam o fim das mitologias propriamente ditas; Pan, Brama, Prajâpati, gêneros supremos, seres absolutos e puros são figuras míticas quase tão pobres de imagens quanto o Deus transcendental dos cristãos. (Durkheim e Mauss 2001:450)

ÁPICE CHINÊS-GREGO DAS FORMAS PRIMITIVAS

E por aí, prece que nos aproximamos insensivelmente dos tipos abstratos e relativamente racionais que se acham no ápice das primeiras classificações filosóficas. Já é certo que a filosofia chinesa, quando é propriamente taoísta, baseia-se essencialmente no sistema de classificação que descrevemos. Na Grécia, sem nada querer afirmar com relação à origem histórica das doutrinas, não se pode deixar de notar que os dois princípios do ionismo heracliteano, a guerra e a paz, os de Empédocles, o amor e o ódio, dividem entre si as coisas, como o fazem o yin e o yang na classificação chinesa. (Durkheim e Mauss 2001:450)

V

CIÊNCIA (hierarquia e especulação)

As classificações primitivas não constituem, portanto, singularidades excepcionais, sem analogia com aquelas que estão em uso entre povos mais cultivados; ao contrário, parecem ligar-se, sem solução de continuidade, às primeiras classificações científicas. […] Em primeiro lugar, exatamente como as classificações dos cientistas, são sistemas de noções hierarquizadas. […] Ademais, estes sistemas, exatamente como os da ciência, têm uma finalidade totalmente especulativa. (Durkheim e Mauss 2001:450)

CLASSIFICAÇÕES CIENTÍFICAS =/= TECNOLÓGICAS

Tais classificações são, pois, destinadas, antes de tudo, a unir as ideias entre si, a unificar o conhecimento; a este título, pode-se dizer sem inexatidão que são obra de ciência e constituem uma primeira filosofia da natureza. [Nota 225: Por aí distinguem-se nitidamente daquilo que se poderia chamar as classificações tecnológicas. É provável que, desde sempre, o homem tenha classificado de maneira mais ou menos clara as coisas de que se alimenta segundo os processos que emprega para apanhá-las: por exemplo, em animais que vivem na água, ou nos ares, ou sob a terra. Mas inicialmente, os grupos assim constituídos não são ligados uns aos outros e sistematizados. São divisões, distinções de noções, não quadros de classificação. Ademais, é evidente que tais distinções são estritamente associadas na prática e relação à qual nada mais fazem senão exprimir certos aspectos. É por esta razão que não falamos delas neste trabalho onde procuramos sobretudo esclarecer um pouco as origens do procedimento lógico que está na base das classificações científicas.] (Durkheim e Mauss 2001:451)

SOCIOMORFISMO (o anti-Frazer)

Muito longe de serem as relações lógicas das coisas que servem de base às relações sociais dos homens, como parece admitir o Sr. Frazer, na realidade são estas que serviram de protótipo àquela. Segundo ele, os homens ter-se-iam dividido em clãs de acordo com uma classificação prévia das coisas; ora, muito ao contrário, eles classificaram as coisas porque estavam divididos em clãs. (Durkheim e Mauss 2001:451)

A sociedade não foi simplesmente um modelo segundo o qual o pensamento classificador teria trabalhado; foram seus próprios quadros que serviram de quadros ao sistema. As primeiras categorias lógicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram classes de homens nas quais tais classes foram integradas. Foi porque os homens estavam agrupados e viam-se em pensamento em forma de grupos que agruparam idealmente os outros seres, e as duas maneiras de agrupamento começaram a confundir-se a ponto de se tornar indistintas. As fratrias foram os primeiros gêneros; os clãs, as primeiras espécies. (Durkheim e Mauss 2001:451)

Não só a forma exterior das classes, mas as próprias relações que as unem umas às outras são de origem social. É porque os grupos sociais se encaixam uns nos outros, o sub-clã [no clã], o clã na fratria, a fratria na tribo, que os grupos de coisas se dispõem de acordo com a mesma ordem. A extensão regularmente decrescente, à medida que se passa do gênero à espécie, da espécie à variedade, etc., vem da extensão igualmente decrescente que apresentam as divisões sociais, à medida que a gente se afasta das mais amplas e das mais antigas para aproximar-se das mais recentes e das mais derivadas. E se a totalidade das coisas é concebida como um sistema uno, é porque a própria sociedade é concebida da mesma maneira. Ela é um todo, ou antes ela é o todo único ao qual tudo é referido. Assim a hierarquia lógica não é mais do que outro aspecto da hierarquia social e a unidade do conhecimento não é outra coisa senão a própria unidade da coletividade, estendida ao universo. […] Há mais: os próprios vínculos que unem seja os seres de um mesmo grupo, seja os diferentes grupos entre si, são concebidos como vínculos sociais. Lembrávamos no começo que as expressões pelas quais ainda hoje designamos tais relações têm uma significação moral; mas, enquanto que para nós quase não passam de metáforas, primitivamente tinham todo o seu sentido. As coisas de uma mesma classe eram realmente consideradas como parentes dos indivíduos do mesmo grupo social e, por conseguinte, como parentes umas das outras. Elas são “da mesma carne”, da mesma família. As relações lógicas constituem então, em certo sentido, relações domésticas. Às vezes até, […] são totalmente comparáveis àquelas que existem entre o senhor e a coisa possuída entre o chefe e seus subordinados. (Durkheim e Mauss 2001:452)

AFETOS SOCIAIS

[O]s mesmos sentimentos que estão na base da organização doméstica, social, etc., presidiram também tal repartição lógica das coisas. Estas se atraem ou se opõem da mesma maneira como os homens são ligados pelo parentesco ou opostos pela desforra. Confundem num pensamento comum. Aquilo que faz com que umas se subordinem às outras é algo totalmente análogo àquilo que faz com que um objeto possuído apareça como inferior a seu proprietário e o súdito a seu senhor. São, portanto estados de alma coletiva que deram origem a estes agrupamentos e, ademais, tais estados são manifestamente afetivos. Há afinidades sentimentais entre as coisas assim como entre os indivíduos, e é de acordo com estas afinidades que elas são classificadas. (Durkheim e Mauss 2001:453)

As coisas são antes de tudo sagradas ou profanas, puras ou impuras, amigas ou inimigas, favoráveis ou desfavoráveis; isto significa que seus caracteres mais fundamentais limitam-se a exprimir a maneira pela qual afetam a sensibilidade social. As diferenças e as semelhanças que determinam a maneira pela qual se agrupam são mais afetivas do que intelectuais. Eis como as coisas mudam, de certa forma, de natureza de acordo com as sociedades; é que elas afetam de maneira diferente os sentimentos dos grupos. […] É que cada região tem seu valor afetivo próprio. Sob a influência de sentimentos diversos, ela é referida a um princípio religioso especial e, por conseguinte, é dotada de virtudes sui generis que a distinguem de qual outra. E é este valor emocional as noções que desempenha o papel preponderante na maneira pela qual as ideias se aproximam ou se separam. É el[e] que serve de caráter dominador na classificação. (Durkheim e Mauss 2001:454)

ANTROPOCENTRISMO (indivíduo) NÃO, SOCIOCENTRISMO

O que foi dito precedentemente permite precisar melhor em que consiste tal antropocentrismo, que seria melhor chamar de sociocentrismo. O centro dos primeiros sistemas da natureza não é o indivíduo; é a sociedade. Ela é que se objetiva, e não mais o homem. […] É em virtude da mesma disposição mental que tantos povos situaram o centro do mundo, “o umbigo da terra”, em sua capital política ou religiosa, isto é, la onde se encontra o centro de sua vida moral. Da mesma forma ainda, mas em outra ordem de ideias, a força criadora do universo e de tudo aquilo que aí se encontra foi concebido inicialmente como o antepassado mítico, gerador da sociedade. (Durkheim e Mauss 2001:454)

CONCEITO CIENTÍFICO x EMOÇÃO RELIGIOSA

Ora, o conceito é a noção de um grupo de seres claramente determinado; seus limites podem ser marcados com precisão. Ao contrário, a emoção é uma coisa essencialmente vaporosa e inconsciente. Sua essência contagiosa brilha muito além de seu ponto de origem, estende-se a tudo aquilo que a cerca, sem que se possa dizer onde se detém sua potência de propagação. Os estados de natureza emocional participam necessariamente do mesmo caráter. Não se pode dizer nem onde começam nem onde acabam; perdem-se uns nos outros, misturam suas propriedades de modo que não se pode categorizá-los com rigor. De outro lado, para poder marcar os limites de uma classe, é necessário ainda ter analisado os caracteres pelos quais se reconhecem os seres reunidos nesta classe e que os distinguem. Ora, a emoção é naturalmente refratária à análise ou, ao menos, dificilmente se presta a isto, porque é demasiado complexa. Sobretudo quando é de origem coletiva, desafia o exame crítico e lógico. A pressão exercida pelo grupo social sobre cada um de seus membros não permite que os indivíduos julguem livremente as noções que a própria sociedade elaborou e onde ela pôs alguma coisa de sua personalidade. Semelhantes construções são sagradas para os particulares. Por isso, a história da classificação científica é, em última análise, a própria história das etapas no decurso das quais este elemento de afetividade social se enfraqueceu progressivamente deixando sempre mais o lugar livre ao pensamento refletido dos indivíduos. Mas falta muito para que estas influências longínquas que acabamos de estudar tenham cessado de se fazer sentir em nossos dias. Deixaram atrás de si um efeito que sobrevive a elas e que está sempre presente: é o próprio quadro de toda classificação, é todo este conjunto de hábitos mentais em [virtude] dos quais nos representamos os seres e os fatos sob a forma de grupos coordenados e subordinados uns aos outros. (Durkheim e Mauss 2001:455)

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