Prática musical e perspectivas para uma teoria da ação social

Arthur Prando do Prado
Novembro/ 2024

Apresentação
A leitura deste texto requer que você assista, antes de mais nada, este vídeo. Recomendo também que você ouça a música Sampa em qualquer plataforma de streaming, embora não seja imprescindível para a compreensão do texto. Por fim, recomendo que você ouça os arquivos de áudio, anexos também no mural, mas esses apenas quando chegar à página 13, para ouvir os sons das partituras ali transcritas.

Este texto foi elaborado como um experimento e um exercício de pesquisa. Os caminhos para estudar o fazer musical como uma prática de interação social vão sendo gradualmente abertos conforme a leitura da bibliografia teórica começa a informar, ou a conformar, o olhar no momento em que me proponho a descrever uma imagem extraída de uma situação social. Desse esforço para descrever vai surgindo um método e reflexões mais consistentes sobre os insights gerados pelos debates teóricos que tenho como interlocutores.

Apresentarei, então, a descrição de um vídeo realizado em uma mentoria voltada para o problema da ansiedade na performance musical. Essa é uma atividade coordenada por Rafael Ponce, Mestre em Música pelo Instituto de Artes e doutorando em Saúde coletiva na Faculdade de Ciências Médicas, ambas as titulações pela Unicamp. Foi ao fazer o levantamento bibliográfico para meu projeto de doutorado que encontrei a Dissertação de Mestrado do Rafael, sobre o tema da ansiedade na performance musical (PONCE, 2020). Pelas redes sociais descobri que esse tema de pesquisa se tornou um trabalho de mentoria, que contratei alguns meses depois.

Em uma das sessões toquei um arranjo instrumental da música Sampa, de Caetano Veloso, da qual um trecho específico foi escolhido para ser praticado e filmado. É esse trecho de 9 segundos de duração de um vídeo em que eu mesmo apareço tocando, que descrevo e analiso aqui. A princípio essa atividade de descrição seria apenas um treino pessoal para minha pesquisa. Contudo, uma vez que o ato de descrever me levou a entendimentos importantes de alguns aspectos da pesquisa, decidi que seria proveitoso elaborar um texto mais estruturado para debater com colegas do Laspa e para talvez tentar publicá-lo.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
1. A ideia de analisar um vídeo em que eu mesmo sou o ator principal, sem que isso seja problemático do ponto de vista científico, tem por base, primeiramente uma concepção de objetividade inspirada por Donna Haraway e, em segundo lugar uma reflexão sobre o eu e o outro, inspirada pela fenomenologia. Em linhas gerais, direi partindo desses referenciais que a questão da objetividade e do distanciamento, portanto, não me parecem comprometidas uma vez que não estou na verdade me analisando, mas analisando uma imagem na qual apareço tocando violão. Existe um distanciamento, ou um estranhamento entre mim e a minha imagem no vídeo registrado pelas escolhas de ângulo e enquadramento feitas pelo Rafael Ponce, que também propôs qual seria o trecho a ser praticado, indicando além disso os propósitos da atividade. Tanto é verdade esse estranhamento, que ao fazer a descrição me surpreendo e, na verdade, descubro quais procedimentos e gestos aquele eu do vídeo mobilizou para realizar a tarefa.

Desse modo, a diferença entre analisar um vídeo no qual eu apareço e outro no qual outra pessoa aparece, do ponto de vista das supostas “contaminações” causadas pela subjetividade do observador, será aqui considerada irrelevante. Isso porque, seja como for, o olhar daquele que descreve necessariamente deverá compor uma análise com o alcance e com os limites advindos de seu próprio repertório teórico e outros referenciais de visão de mundo. Em certo sentido, quando descrevo uma imagem de mim mesmo, descrevo um outro; em certo sentido, quando descrevo uma imagem de um outro, descrevo a mim mesmo (STRATHERN, 2014 [1]; SCHUTZ, 1967: 100 [2]). Em outras palavras, a subjetividade está sempre presente e não será um problema, contanto que eu esteja consciente disso (HARAWAY, 1995).

2. A principal consideração a fazer é que a forma de compreender que orienta minha análise empírica tem como referencial principal a etnometodologia. Isso significa que ao descrever uma situação social, meu olhar estará voltado para a dimensão interacional dos processos observados, de modo a enfatizar as ações dos participantes a partir de sua própria perspectiva. Ou seja, os especialistas a respeito dos significados e do sentido de uma ação são aqueles que conhecem os detalhes do modo como ela é realizada e que, pelo fato de serem seus realizadores, são capazes de uma relatabilidade acerca da ação, ou seja, são capazes de descrevê-las de modo suficiente em seus próprios termos, para si mesmos e para os outros (RAWLS, 2008).

Não quero dizer com isso que posso conhecer as motivações dos participantes de uma ação, uma vez que, na verdade, desse ponto de vista, elas não são relevantes. Não será, portanto, a partir de motivações individuais ou de determinações estruturais que a ação será descrita e analisada, mas tendo em vista a posição ocupada por um ator dentro de um grupo situado, segundo os métodos que é capaz de mobilizar. Nesse sentido é importante considerar as expectativas constitutivas de uma ação situada de acordo com as propriedades de ordem (“order properties [of the situated group]”) que os participantes são capazes de reconhecer e, a partir delas, produzir sentido para a ação, tornando-as compreensíveis (idem: 717-718).

Desse modo, os membros de um grupo guiam suas ações a partir de um processo contínuo de produção de inteligibilidade mútua, pautado por maneiras mutuamente orientadas de produzir ordem (idem: 701). Uma vez que é central, de um ponto de vista etnometodológico, a interdependência entre os membros, procedimentos de resposta, antecipação e ajuste (MONDADA, 2020) são realizados a partir de expectativas compartilhadas. Mais que isso, essas expectativas impulsionam o sentido da ação de acordo com a capacidade de relatabilidade (accountability) constitutiva do papel realizado pelos membros, que ao agirem “relatam” continuamente para si mesmos aquilo que esperam das ações dos outros, bem como aquilo que antecipam a respeito das expectativas que os outros têm sobre suas próprias ações (NAZARETH, 2016; WEEKS, 1996). Deste ponto chego a mais um conceito importante da etnometodologia, elaborado primeiramente por Harold Garfinkel, que são as condições de confiança constitutivas das propriedades de ordem de uma situação, algo que é assumido de saída, tomado como dado (“taken-for-granted [methods of producing order that constitute sense”]) e confirmado ou rejeitado pela competência dos membros em realizar as expectativas mutuamente sustentadas. (RAWLS, 2008: 712; TUROWETZ & RAWLS, 2021; NAZARETH, 2016). Portanto, uma vez que as condições de confiança são garantidas pela competência dos membros em relação às expectativas, a competência é o alicerce fundamental da moralidade para Garfinkel.

Para encaminhar uma conclusão a essa exposição, direi que a etnometodologia, não busca transcender o senso comum supostamente desinformado, para assim revelar as verdadeiras forças que movem os indivíduos. Ao contrário, o senso comum será tomado como um raciocínio sociológico prático a partir do qual a realidade é continuamente produzida e significada nas atividades cotidianas. Essa concepção se fundamenta no entendimento de que os métodos empregados pelos membros de um grupo para a realização de uma atividade são da mesma natureza que aqueles empregados pelos sociólogos (COULON, 1995: 55; PARSONS, 2010: 96).

Assim, por exemplo, um músico que toca seu instrumento com excelência executa seus gestos e operacionaliza seu conhecimento musical, a partir de um senso comum, ou seja, por uma forma própria de manejar os detalhes de um saber. Mais ainda, por mais que parte importante desse saber tenha sido adquirido por meio de aulas nas quais professores lhe ensinaram as maneiras corretas, o aprendizado implicará – por maior que seja o desejo de ortodoxia – interpretação e ajustes. Como consequência, a distância entre o método ensinado e o aprendido deverá criar um modo próprio, singular, situado de tocar, que ao mesmo tempo é portador de determinadas características que o tornarão reconhecível por outros músicos (a dimensão dessa distância, por outro lado, talvez seja um fator decisivo para determinado tipo de erro, no sentido de inadequação).6 A propósito, os próprios professores deverão elaborar métodos ao longo da interação cotidiana de ensino e de acordo com as especificidades colocadas pelos alunos e pelo material musical em questão, no qual haverá distâncias entre uma matéria e seu entendimento e entre seu entendimento e o modo de comunicar e mostrar esse entendimento. É o conhecimento de senso comum que permitirá ao professor participar da produção de uma inteligibilidade mútua capaz de produzir resultados aproximados das expectativas. É desse modo que os termos de um ensino musical podem ser reconhecíveis pelos membros, ou seja, por aqueles que dominam a linguagem de forma indicial e em seus detalhes, no que diz respeito a finalidades práticas (NAZARETH, 2016; RAWLS, 2008: 706).

“For Garfinkel, habits and routines, like any other social object, are only themselves constituted as intelligible objects against a background of constitutive order. Workers must be able to recognize what kind of a sequence they are in.” (RAWLS, 2008: 706)

Um exemplo oferecido por Anne Warfield Rawls, ilustra bem uma das dimensões desse entendimento, que diz respeito aos hábitos e rotinas, considerando-se de modo central o aspecto da duração de uma ação, ou da sequencialidade implicada entre um gesto e outro. A autora refere-se à atividade dos trabalhadores em uma fundição de ferro, afirmando que para além da rotina, puramente, o que permitirá que esses trabalhadores dominem os procedimentos do ofício é sua capacidade de reconhecer pelo olhar, as características do material que manuseiam para decidir, ao longo da duração do processo, quais sequências de gestos a realizar a fim de que o ferro se molde de acordo com suas expectativas.

“Saying it is a routine does not answer these questions. […] Hughes et al. (2003) found that skilled iron workers have ways of turning a block of molten iron and changing the settings on the ‘rollers’ that might be called routines by some researchers. The interesting question is how ‘skilled’ workers recognize those situations in which these ‘routines’ might be appropriate. They must be able to ‘see’ within fractions of seconds that the iron is not looking right, and then select from a variety of options for altering the ‘normal’ rolling procedures” (RAWLS, 2008: 705)

Se bem que, uma vez que essa ação se processa sob uma ordem constitutiva produzida a partir de uma série de expectativas em relação a forma final da peça de ferro, pode-se dizer que essas suas expectativas, em outro nível são expectativas compartilhadas.

DESCRIÇÃO DA PRÁTICA MUSICAL
Nessa passagem treino minha capacidade de realizar uma progressão de três blocos do mesmo acorde (G7), indo de uma posição mais grave para uma mais aguda. Cada bloco é formado por notas das cordas 1, 2, 3 e 4, sendo que as notas tocadas na corda 1, por serem as mais agudas, soarão como a melodia principal. Essas notas tocadas na corda 1 estão distribuídas da seguinte forma: três notas para o primeiro bloco, três para o segundo e uma para no terceiro [3].

Para formar o acorde de G7 no primeiro bloco, posiciono meu dedo indicador sobre as 4 cordas na casa 3 e o dedo médio na terceira corda na casa 4 (Imagem 1). Como disse anteriormente, o objetivo é criar uma melodia na corda 1, ao mesmo tempo que as notas pressionadas nas demais cordas produzem um acorde. Desse modo, a primeira nota da melodia é a nota sol, que toco junto com o acorde, e que está na posição casa 3/corda 1.

Dito isso, é preciso antes fazer algumas considerações anteriores sobre a organização do aspecto rítmico a ser praticado. Como é possível ouvir – mas não ver –, eu inicio, batendo o pé direito, para criar uma pulsação uniforme com a qual irei sincronizar as ações, colocando cada bloco justamente sobre a cabeça do tempo, ou seja, simultaneamente à batida do pé (digamos que o tempo é formado pela cabeça do tempo, que é a batida do pé, ou o clique de um metrônomo e pelo contratempo, ou seja, a duração entre uma batida e outra). Enquanto a nota tocada junto com o bloco cai sobre a cabeça do tempo, as duas outras notas da melodia, acontecem no contratempo, ou seja, durante a duração em que o pé [melhor dizendo, a ponta do pé, enquanto o calcanhar permanece sempre parado no chão] está no ar até que caia e provoque a próxima batida. Serão ao todo cinco batidas, que devem ser entendidas separando-se dois grupos de duas batidas cada, que correspondem aos dois primeiros compassos. A quinta batida corresponde ao primeiro tempo do compasso seguinte, no qual encerro a frase, por ser esse o propósito do exercício. O primeiro bloco será tocado, então, apenas no momento em que o pé bate a terceira batida, ou seja, no tempo 1 do segundo compasso.

Esse trecho de 9 segundos de duração, portanto, é um fragmento extraído de um contexto maior. É um trecho da música Sampa, de Caetano Veloso, isolado para um treino de precisão rítmica, de modo que em seu contexto original, o que dá sentido a ele é aquilo que vem antes e aquilo que vem depois, mas que aqui está omitido. Um primeiro desdobramento disso é que, por mais que as notas que antecedem o trecho não façam parte desse exercício no que diz respeito às notas tocadas no violão, elas possivelmente estão presentes na minha mente. Isso porque, para tocar as notas do exercício no tempo certo, pode ser um bom apoio cantar mentalmente as duas notas do primeiro compasso, as notas e lá bemol, que antecedem a nota sol pela qual inicio a parte do meu treino que envolve finalmente as mãos tocando o instrumento.

Importante ponderar, no entanto, que quando digo que “cantar mentalmente” pode ser um bom apoio, fica parecendo que essa é uma ação necessariamente escolhida de um ponto de vista racional, do ponto de vista de um cálculo sobre a eficiência. Ao contrário, me parece que muitas vezes esse tipo de procedimento ocorrerá sim como um apoio, um facilitador para a ação, mas devido ao fato de que a melodia já está incorporada, de modo que para praticar um trecho destacado do todo, possivelmente o corpo irá acionar, como que por reflexo, uma reprodução mental daquele início que contextualiza o trecho.

Tratando especificamente desse trecho, extraído da música Sampa, de Caetano Veloso, o fato de ser uma canção poderá criar uma necessidade ainda mais forte para “cantar mentalmente” devido à vinculação entre melodia e letra. Enquanto o verso inteiro diz “É que quando eu cheguei por aqui”, o início do exercício está na nota sol, que cai sobre a sílaba quan, do “quando”. As notas e lá bemol, caem respectivamente sobre as palavras É e que. Desse modo temos aqui uma ação cujo possível início não está visível e, assim sendo, começa a ser desencadeada mentalmente para, apenas a partir de um dado momento específico passar a ser acompanhada por gestos feitos pelas mãos sobre o violão. Nesse momento da ação, o som imaginado passa a ser compartilhado com o ouvinte.

Aqui está uma parte da primeira estrofe da música. O verso correspondente à melodia do exercício está em vermelho, dentro do destaque em amarelo que inclui, entre colchetes, as notas/palavras possivelmente imaginadas pelo instrumentista.

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É- que- quan – do eu – che – guei – por – a – qui eu nada entendi
[la- lab] sol – solb – sol – si – sib – si – ré
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas

Antes ainda das batidas do pé, é possível notar que essa ação que se desenrola ao longo de 9 segundos, começa com uma respiração que dura um pouco mais de 1 segundo. É só aí que a pulsação da batida do pé começa. Aos três segundos é o momento em que é possível que eu esteja cantando mentalmente as notas e lá bemol, inclusive com a letra (“É que…”). Essa hipótese a respeito de notas cantadas mentalmente pode ser colocada, não porque eu me lembre de como realizei a ação, mas porque quando, no vídeo, a pulsação marca o tempo 2, o momento seguinte será o do contratempo (duração entre um pulso e outro) desse tempo 2, nos quais se encontram precisamente colocadas as notas e lá bemol. Em seguida, em cima do tempo 1 do compasso seguinte, ou seja, simultaneamente à terceira batida do pé, eu finalmente toco a nota sol junto com o bloco do acorde, entre os 3 e 4 segundos.

Nesse momento, a mão direita é que será responsável pela simultaneidade entre o som e a terceira batida do pé, enquanto que a posição da mão esquerda já estava feita desde o momento em que a câmera começou a gravar. O dedo polegar toca a corda 4 de cima para baixo, enquanto os demais dedos tocam as demais cordas de baixo para cima. Existe uma coordenação entre mão direita e esquerda que talvez seja interessante considerar como “divisão do trabalho”. O curso dessa ação seguirá no sentido de produzir a continuidade da melodia com as notas sol bemol e sol, que serão tocadas pelo deslocamento do dedo indicador da mão direita para a casa 2 do violão para pressionar a nota sol bemol que será tocada pela base do dedo indicador da mão direita, e de volta à casa 3, para pressionar novamente a nota sol, que será tocada pelo dedo médio da mão direita. O que torna a melodia possível, para além do som específico de cada nota, será a distribuição rítmica entre elas que, nesse caso, divide o tempo em três partes iguais (tercina).

A ação segue pautada pela velocidade (andamento) da pulsação marcada pelo pé direito. Quando enfim chega a quarta batida, a mão esquerda, aos 5 segundos, já se deslocou de sua posição anterior e está pronta no segundo bloco para que a mão direita possa tocar juntas as quatro cordas simultaneamente à batida do pé. Nesse momento, a nota mais aguda do bloco, posicionada na corda 1, é a nota si. Dessa vez o dedo indicador está na posição corda 4/casa 5, o médio na corda 2/casa 6, o anelar na corda 3/casa 7 e o mínimo na corda 1/casa 7 (Imagem 2). Logo em seguida, tocarei o mesmo padrão tocado na melodia do primeiro bloco, deslocando o dedo mínimo para a casa 6 e de volta para a casa 7, tocando o fragmento si – si bemol – si, também em tercina, ou seja, dividindo o tempo em três partes iguais. Nessa etapa da ação, a mão esquerda precisou executar uma complexa mudança de tônus no momento da passagem da primeira para a segunda posição, efetuada em uma duração de aproximadamente um segundo. Enquanto isso, para seguir refletindo sobre a divisão do trabalho entre as mãos, a mão direita realizou exatamente o mesmo movimento, primeiro tocando as quatro notas juntas, em seguida tocando alternadamente com o dedo indicador e o médio, duas notas na corda 1.

O movimento seguinte exigirá que a mão esquerda execute na duração da passagem dos 5 para os 6 segundos, o deslocamento para um bloco formado pelo dedo indicador na posição casa 9/corda 4, o médio na casa 10/corda 2, o anelar na casa 9 /corda 2 e o mínimo na casa 10/ corda 1 (Imagem 3), na qual está a nota , com a qual se encerra a frase melódica. Do ponto de vista da posição dos dedos, a única diferença em relação ao bloco anterior é que o dedo indicador está uma casa a frente. Desse modo, o restante da posição foi apenas transposto para a região das casas 9 e 10. Enquanto isso a mão direita irá tocar apenas uma vez as quatro cordas juntas, simultaneamente à quarta batida do pé. Esse último som irá durar o tempo 4 inteiro (semínima), ao qual se segue a quinta batida do pé aos 7 segundos.

A divisão do trabalho poderia ser entendida, a princípio, como uma divisão entre variação e regularidade. Para executar esse treino específico, podemos notar que a batida do pé é responsável por uma função inteiramente regular, limitada a marcar o pulso da forma mais uniforme possível. A mão direita desempenha uma função bastante regular, produzir o som das notas tocadas pela mão esquerda, observando a simultaneidade com a batida do pé direito. Contudo seu trabalho envolve mais elementos incorporados que a ação de bater o pé direito uniformemente. Assim existe uma confiança (no sentido de Garfinkel) pressuposta na capacidade da mão direita em sincronizar com o pulso, acertar todas as quatro cordas, enfatizar a nota da corda 1 – que é onde está a melodia – alternar os dedos indicador e médio para fazer as tercinas.

Todos esses movimentos são responsáveis por produzir os parâmetros de regularidade a serem seguidos pela mão esquerda que, por sua vez, terá que realizar um trabalho constituído por gestos mais complexos que realizam mais variações ao longo da duração da ação. A mão direita, para produzir o som certo no ritmo certo, precisa que a mão esquerda tenha conseguido tocar as notas certas, fazer as trocas de posição a tempo, pressionar adequadamente as notas, para que o som possa ser produzido. Para realizar sua parte do trabalho nesse treino, a mão esquerda precisa ser portadora de uma grande quantidade de gestos incorporados. Ao começar o treino, portanto, há de saída uma confiança constitutiva da ação, de que minhas mãos e meu pé direito são portadores das competências necessárias para realizar em conjunto parte desse trabalho de forma não problemática (“taken for granted“, no vocabulério de Garfinkel). Ou seja, eu não tinha dúvidas de que minha mão esquerda fosse capaz de fazer os acordes; não tinha dúvidas de que minha mão direita era capaz de tocar a melodia junto com os blocos. Tudo isso podia ser feito de forma não problemática.

A finalidade do treino, contudo, se refere a existência de um aspecto problemático identificado por uma outra pessoa (Rafael Ponce) que, após me ver tocar a música inteira, identificou que eu não estava obedecendo uma divisão rítmica precisa. Esse observador me perguntou então se eu optava por um ritmo mais flexível por uma escolha estética. Após pensar por alguns segundos, respondi que não, que na verdade havia ajustado minha forma de tocar a uma estética de ritmo livre, não exatamente por escolha, mas sim por dificuldade em obedecer a uma pulsação uniforme. Decidimos então, como proposta de treino, definir uma pulsação uniforme feita pelo pé direito – claro que a pulsação feita pela batida do pé não é exata (normalmente usa-se um metrônomo para esse tipo de exercício), mas foi a solução possível naquele momento. Em seguida o trecho foi repetido várias vezes antes de ser filmado, de modo que fosse incorporada e tornada não problemática essa sincronização.

Certamente eu poderia aqui considerar ainda outros agentes como o coração e o sistema respiratório, que seguem fazendo seus trabalhos de forma regular, de maneira indispensável para a prática musical. Contudo irei acrescentar ao que descrevi anteriormente, apenas o trabalho dos ouvidos que, na prática musical são responsáveis por avaliar o som produzido no violão ao longo dos 9 segundos da duração do trecho. O ouvido-interno [4], ou a mente que pensa no som, antecipa o som que espera ser ouvido pelo ouvido-fisiológico no trabalho feito por mãos pé e instrumento – sem falar nos muitos outros participantes. As mãos respondem ao som registrado dando sequência em seu trabalho e inclusive realizando os ajustes necessários, corrigindo inevitáveis imprecisões a despeito das quais a ação pode seguir seu curso.

O corpo do instrumentista tem, portanto, a capacidade de incorporar ações constituídas por múltiplos gestos divididos e coordenados por seus membros, basicamente através da repetição. A maioria das ações sociais requer algum tipo de repetição que favorece sua incorporação seja como for, inclusive quando parte delas é realizada com erros. Chamo de treino, portanto, o procedimento no qual essa repetição é realizada de forma a produzir a incorporação de uma ação de forma focada e organizada para um determinado fim. Desse modo, esse treino acabou por produzir uma competência que não terá apenas a finalidade de me permitir tocar melhor um trecho de 9 segundo de Sampa, mas produziu avanço no processo – talvez interminável – do desenvolvimento da firmeza rítmica em geral [5].

Importante considerar ainda, que esse conceito de repetição se distingue daquilo que acima chamei de regularidade. A repetição no sentido mobilizado a essa altura implica um ciclo de fazer muitas vezes um mesmo processo constituído por aqueles agentes que dividem o trabalho entre regularidade e variação. Nesse sentido a repetição será pensada, a partir de meu entendimento da proposta de Gilles Deleuze, como justamente aquilo que produz a diferença. Isso porque a repetição de um gesto – ou de um conjunto de gestos articulados – nunca pode equivaler à execução de uma sequência de uma mesma ação igual. Ao contrário, a cada repetição realizada no transcorrer de uma duração, observamos a expressão de um devir no qual surge a diferença e consequentemente uma transmutação. A singularidade daquilo que se repete aparece então como a repetição de algo novo, uma vez que o acontecimento considerado a partir do momento em que acontece se opõe a ideias prévias realizando assim um movimento de atualização (Saberes Cotidianos, 2021) [6].

Antes de concluir, gostaria de acrescentar que o vídeo no qual toco um trecho de 9 segundos da música Sampa, evidencia o treino de uma ação envolvida em diversas expectativas para além das minhas e das do Rafael Ponce, meu treinador. Se me empenho em tocar um trecho de acordo com uma determinada pulsação, isso ocorre porque para mim está dado que meus eventuais companheiros de tocar junto esperarão que eu consiga realizar a ação de acordo com esse tipo de firmeza rítmica. O eventual público da eventual performance estará também a espera dessa consistência específica, por mais que seja musicalmente leigo. Será, todavia, a partir de um raciocínio sociológico prático ou de um conhecimento incorporado que ele irá avaliar, ou então sentir ou fruir de uma sonoridade que ele possa reconhecer. Esse reconhecimento, por sua vez, deverá ocorrer tanto de um ponto de vista mais geral daquilo que um determinado coletivo entende como ritmo e, digamos, consonâncias agradáveis, como pela participação da gravação original produzida pelo Caetano Veloso em um dado momento décadas atrás, e que estará muito possivelmente presente nos ouvintes como também nos músicos. A lembrança da música original cria um parâmetro não necessariamente fixo, mas de diversas maneiras, balizador para a ação de tocar e para a de ouvir Sampa em uma apresentação.

Contudo, chega agora o momento de expor um erro que percebi apenas no momento em que acrescentava os últimos detalhes deste texto. O que acontece é que, em comparação com a versão original (CHEDIAK, 2020) eu toquei a divisão rítmica errada.


Ouça: “Versão original“; “Minha versão“.

Nas partituras acima, destaquei em vermelho o trecho de seis notas que, na versão original estão divididas entre um grupo de quatro notas e outro de duas enquanto na minha versão estão organizadas em dois grupos de três. Como consequência mais imediata, o que ouviremos na versão original serão notas mais curtas, ou mais rápidas, de modo que a última nota da frase, a nota do trecho destacado em verde estará ainda no mesmo compasso e se prolongará para o próximo. Na minha versão ouviremos notas mais longas, ou mais lentas que, por isso, preencherão o compasso inteiro, de modo que a nota final, do destaque em verde, cairá já no compasso seguinte.

Esse erro aconteceu, em primeiro lugar, porque aprendi a música ouvindo – ou lembrando – e procurando no violão as notas correspondentes àquilo que ouvi. O resultado foi uma distância entre aquilo que havia para ser aprendido e a forma como aprendi, ou seja, uma interpretação geradora de algo novo. Importante apontar, contudo que a intenção não era gerar algo novo, no sentido de inovador, mas apenas produzir inteligibilidade a partir dos recursos – ou da competência – que era capaz de mobilizar em um momento específico dos conhecimentos que incorporo por meio de treino (MONDADA, 2022: 292). Considerar essa diferença como erro ou interpretação possível dependerá de uma relação entre compositor, intérprete e plateia (SMALL, 1998: 5-10) para que a versão seja, primeiramente, reconhecível como Sampa e, em seguida, que soe bonito (ver também a versão de Sampa feita por João Gilberto, que alterou deliberadamente a rítmica ao longo de diversos trechos da melodia). Insistindo, essas finalidades da ação não podem ser garantidas pelo instrumentista, mas são produzidas, como compartilhamento, ao longo da duração da interação entre esses participantes.

NOTAS
[1] Não tenho a intenção de dizer que essa é uma ideia da autora, mas minha leitura de seu texto, produz em mim esse tipo de entendimento metodológico coerente, ainda que pela via da distorção ou mesmo do erro.
[2] “It goes without saying that, not only are intentional Acts directed upon another person’s stream of consciousness transcendent, but my experiences of another person’s body, or of my own body, or of myself as a psychophysical unity fall into the same class.”
[3] Consideração de teoria musical: O acorde de G7 é formado pelas notas sol-si-ré-fá. Fazê-lo em posições diferentes implica que irei tocar as mesmas notas, no entanto distribuídas de formas diferentes. O terceiro bloco terá a formação la bemol-si-ré-fá, que além de ser um Ab°, pode continuar ser entendido como um acorde de G7, porém, um G7(b9). Trata-se, portanto, do mesmo acorde, apenas com a omissão da tônica (sol) e o acréscimo da nota la bemol como nota de tensão (nona menor).
[4] Proponho aqui uma distinção entre ouvido interno e ouvido biológico, inspirada na distinção proposta por Alfred Schutz (1951) entre tempo interno e tempo externo. Apoia também minha nomeação dos conceitos a definição que Talcott Parsons faz de “organismo biológico”, como uma condição concreta, ou seja que não está sob o controle do ator. Parsons opõe esse conceito ao de self, o ator que a partir de meios e condições realiza uma ação de um ponto de vista subjetivo – Schutz diria intersubjetivo – de modo que esse organismo biológico é considerado como parte do “mundo externo” (PARSONS, 2010: 86) que, contudo, não está fora do “sujeito cognoscente” em um sentido espacial, uma vez que sua existência se dá apenas para sua própria percepção (idem: 82).
[5] Sobre esse aspecto me parece ainda fundamental ter em vista que todo corpo, com o avanço da idade, começará inevitavelmente a perder sua firmeza rítmica assim que os reflexos se tornarem mais lentos e a musculatura mais frágil. Uma vez que se admita algumas variações estéticas, a diminuição do andamento e a flexibilidade da pulsação deverão ser bons ajustes possíveis para persistir na prática musical mesmo com a chegada de uma idade avançada.
[6] Claro que ainda é preciso ir diretamente a obra de Deleuze. Contudo, me pareceu coerente com o percurso traçado até aqui, não camuflar a fonte nem tão legítima dessa observação deleuziana, ou seja, a interpretação de uma youtuber que não se identifica. Sigo, portanto, na trilha do raciocínio sociológico prático como forma de produzir equivocações (VIVEIROS DE CASTRO, 2018) como caminhos para entendimentos novos.

BIBLIOGRAFIA

COULON, Alain. Etnometodologia. Editora Vozes, Petrópolis, 1995.
CHEDIAK, Almir (Org.). Songbook Caetano Veloso: volume 2. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 2020.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-41, 1995.
MONDADA, Lorenza. The Situated and Methodic Production of Accountable Action. In: The Ethnomethodology Program. Edited by: Douglas W. Maynard and John Heritage, Oxford University Press, 2022.
_______________. The temporality of embodied action: responding, anticipating, pre-empting. Video do YouTube postado em 4 de mai. de 2021 [gravado em 4/11/2020] Acessado em 01 de abril de 2024. https://www.youtube.com/watch?v=lWI4EQTOpfI&t=4s&pp=ugMICgJwdBABGAHK BQ9sb3JlbnphIG1vbmRhZGE%3D
NAZARETH, Eduardo. EduardoNazareth video 1. Vídeo do YouTube, postado em 27 de Novembro de 2016; Acessado em 20 de Maio de 2024. https://www.youtube.com/watch?v=jXaxeB1QuGE&t=5323s
PARSONS, Talcott. A estrutura da Ação social. Editora Vozes, Petrópolis, 2010.
PONCE, Rafael de Mattos. Ansiedade na performance musical: um comparativo entre estudantes de música erudita e de música popular na Universidade Estadual de Campinas. (Dissertação de mestrado em Música) – Instituto de Artes, UNICAMP. Campinas, 2020.
RAWLS, Anne Warfield. Harold Garfinkel, Ethnomethodology and Workplace Studies. Organization Studies 29(05):701–732, 2008.
SABERES COTIDIANOS, “Olhares deleuzianos: diferença e repetição”. Vídeo do Youtube postado em 5 de out. de 2021; acessado em 24/09/2024.
SCHÜTZ, Alfred. Making Music Together: A Study in Social Relationship. Social Research, 18:1/4. 1951 pp.76-97.
_______________. The phenomenology of the social world. Northwestern University Press, Evanston, 1967.
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STRATHERN, Marilyn. “Os limites da autoantropologia”. In: O efeito etnográfico e outros ensaios. Cosacnaif. São Paulo, 2014.
TUROWETZ, Jason; RAWLS, Anne Warfield. The development of Garfinkel’s ‘Trust’ argument from 1947 to 1967: Demonstrating how inequality disrupts sense and self-making. Journal of Classical Sociology 2021, Vol. 21(1) 3–37.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A antropologia perspectivista e o método de equivocação controlada. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 5 (10): 247-264, 2018.
WEEKS, Peter. Synchrony Lost, Synchrony Regained: The Achievement of Musical Co-Ordination. Human Studies, 1996, Vol. 19, No. 2, p. 199-228.