Prata em Lévi-Strauss (2008 [1958])

À luz dessas observações, a interpretação do desdobramento proposta por Franz Boas em seu estudo acerca da arte da costa noroeste deve ser refinada e completada. Segundo ele, a split [375] representation na pintura e no desenho seria apenas a extensão às superfícies planas de um procedimento que se impõe naturalmente no caso dos objetos tridimensionais. Quando se deseja representar um animal numa caixa retangular, por exemplo, é necessário deslocar as formas do animal de modo a que se adaptem ao contorno anguloso da caixa: “Na ornamentação de braceletes de prata segue-se um princípio similar, mas o problema difere um tanto do que se apresenta na ornamentação de caixas retas. Neste último caso, os quatro ângulos fazem uma divisão natural entre as quatro vistas do animal – frente e perfil direito, costas e perfil esquerdo –; não existe tal linha divisória clara no bracelete arredondado, e seria muito difícil juntar os quatro aspectos artisticamente, ao passo que perfis não apresentam a mesma dificuldade… O animal é imaginado cortado da cabeça à cauda, de modo que as duas metades se encontram somente na ponta do focinho e na ponta da cauda. A mão é enfiada no buraco e o animal abraça o pulso. Nessa posição é representado no bracelete. […] A transição entre o bracelete e a pintura ou entalhe de animais não é difícil. O mesmo princípio é adotado…” (Boas 1927: 222-24). [Nota de rodapé 17: Em inglês no original. [N.T.]] (Lévi-Strauss 2012 [1958]:374-5)

Nas dez páginas seguintes, instala-se, num ritmo ofegante, uma oscilação cada vez mais rápida entre temas míticos e temas fisiológicos, como se se tratasse de abolir a distinção que os separa no espírito da paciente e de impossibilitar a diferenciação de seus respectivos atributos. Depois de imagens da mulher deitada em sua rede ou na posição obstétrica indígena – joelhos afastados e voltada para o leste, gemendo, sangrando, com a vulva dilatada e pulsante – (pp. 84-92, 123-24, 134-35, 152, 158, 173, 177-78, 202-08) – vêm chamados nominais aos espíritos, os das bebidas [276] alcoólicas, os do vento, das águas, da mata e até mesmo o do “barco prateado do homem branco” (p. 187), testemunho precioso da plasticidade do mito. Os temas convergem: como a paciente, os nuchu sangram abundantemente, e as dores da paciente assumem proporções cósmicas: “Seu tecido branco interno estende-se até o cerne da terra… até o cerne da terra, seu suor forma uma poça, como sangue, todo vermelho” (pp. 89, 92). Ao mesmo tempo, cada espírito, ao surgir, é detalhadamente descrito, assim como o equipamento mágico que recebe do xamã – contas negras, contas rubras, contas escuras, contas redondas, ossos de jaguar, ossos arredondados, ossos da garganta e muitos outros, colares de prata, ossos de tatu, ossos do pássaro kerkettoli, ossos de picanço-verde, ossos para fazer flautas, contas de prata (pp. 104-18). Depois, a mobilização geral é retomada, como se essas garantias fossem ainda insuficientes e se todas as forças, conhecidas e desconhecidas, tivessem de ser reunidas para a invasão (pp. 119-229). (Lévi-Strauss 2012 [1958]:275-6)

LÉVI-STRAUSS, Claude. 2012 [1958]. Antropologia estrutural. (Trad.: Beatriz Perrone-Moisés). São Paulo: Cosac Naify.