Prata e ouro em Deleuze e Guattari (1999 [1980])

II. Neste caso, ao contrário, o muro branco se afila, fio de prata que vai em direção ao buraco negro. Um buraco negro “aglutina” todos os buracos negros, todos os olhos, todos os rostos, ao mesmo tempo em que a paisagem é um fio que se enrola em sua extremidade final em torno do buraco. É sempre uma multiplicidade, mas é uma outra figura do destino: o destino subjetivo, passional, refletido. É o rosto, ou a paisagem marítima: ele segue a linha de separação do céu e das águas, ou da terra e das águas. Esse rosto autoritário está de perfil, e escorre para o buraco negro. Ou dois rostos face a face, mas de perfil para o observador, e cuja reunião já se encontra marcada por uma separação ilimitada. Ou os rostos que se desviam, sob a traição que os arrebata. Tristão, Isolda, Isolda, Tristão, na barca que os conduz até o buraco negro da traição e da morte. Rostidade da consciência e da paixão, redundância de ressonância ou de acoplamento. Dessa vez o close não tem mais por efeito o de aumentar uma superfície que ele encerra ao mesmo tempo, não tem mais por função um valor temporal antecipatório. Ele marca a origem de uma escala de intensidade, ou faz parte dessa escala, incita a linha que os rostos seguem, na medida também em que eles se aproximam do buraco negro como término: close Eisenstein contra close Griffith (o aumento intensivo da dor ou da cólera, no close do Encouraçado Potenkim) [Nota de rodapé 13: Sobre a maneira pela qual o próprio Eisenstein distingue sua concepção do close e a de Griffith, cf. Film Form.]. Vê-se, ainda aí, que todas as combinações são possíveis entre as duas figuras-limites do rosto. No Lulu de Pabst, o rosto despótico de Lulu decaída se conecta com a imagem da faca de pão, imagem de valor antecipatório que anuncia o assassinato; mas também o rosto autoritário de Jack o Estripador passa por toda uma escala de intensidades que o leva à faca e ao assassinato de Lulu. […] Mais geralmente, serão observadas características comuns às duas figuras-limites. Por um lado, por mais que o muro branco, as grandes bochechas brancas sejam o elemento substancial do significante, e o buraco negro, os olhos, sejam o elemento refletido da subjetividade, eles estão sempre juntos, mas sob os dois modos nos quais ora os buracos negros se repartem e se multiplicam no muro branco, ora, ao contrário, o muro, reduzido à sua crista ou ao seu fio de horizonte, se precipita em direção a um buraco negro que os aglutina todos. Não há muro sem buracos negros, não há buraco sem muro branco. Por outro lado, tanto em um caso quanto no outro, o buraco negro é essencialmente margeado, e mesmo sobremargeado; tendo o contorno, como efeito, seja o de aumentar a superfície do muro, seja o de tornar mais intensa a linha; e o buraco negro jamais está nos olhos (pupila), está sempre no interior da borda, e os olhos estão sempre no interior do buraco: olhos mortos, que veem ainda melhor quando estão dentro do buraco negro. [Nota de rodapé 14: Esse é um tema corrente do romance de terror e da ficção científica: os olhos estão no buraco negro e não o inverso (“vejo um disco luminoso emergir desse buraco negro, como se fossem olhos”). As estórias em quadrinho, por exemplo Circus no 2, apresentam um buraco negro povoado de rostos e de olhos e a travessia desse buraco negro. Sobre a relação dos olhos com os buracos e os muros, cf. os textos e desenhos de J.L. Parant, especialmente Les yeux MMDVI, Bourgois.] . Essas características comuns não impedem a diferença-limite das duas figuras de rosto, e as proporções segundo as quais ora uma, ora a outra, predominam na semiótica mista — o rosto despótico significante terrestre, o rosto autoritário passional e subjetivo marítimo (o deserto pode ser também mar da terra). Duas figuras do destino, dois estados da máquina de rostidade. Jean Paris apresentou o exercício desses polos na pintura, do Cristo despótico ao Cristo passional: por um lado o rosto do Cristo visto de frente, como em um mosaico bizantino, com o buraco negro dos olhos sobre fundo de ouro, sendo toda a profundidade projetada para a frente; por outro lado, os rostos que se cruzam e se desviam, de três quartos ou de perfil, como em uma tela do Quattrocento, com olhares oblíquos traçando linhas múltiplas, integrando a profundidade no próprio quadro (podem-se tomar exemplos arbitrários de transição e de mixagem: a Convocação dos apóstolos, de Duccio, em paisagem aquática, onde a segunda fórmula já conduz o Cristo e o primeiro pescador, ao passo que o segundo pescador permanece preso ao código bizantino. [Nota de rodapé 15: Cf. As análises de Jean Paris, L’espace et le regard, ed. du Seuil, I, cap. I (igualmente, a evolução da Virgem e a variação das relações de seu rosto com o do menino Jesus: II, cap. II)]). (Deleuze e Guattari 1999 [1980]:52-4)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1999 [1980]. Ano zero – rostidade. (Trads.: Ana Lúcia de Oliveira; Lúcia C. Leão) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 3. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.31-61.