Hidrogênio, hélio, silício e carbono em Deleuze e Guattari (1997 [1980])

Mas, se é verdade que a droga remete a essa causalidade perceptiva molecular, imanente, resta toda a questão de saber se ela consegue efetivamente traçar o plano que condiciona seu exercício. Ora, a linha causal da droga, sua linha de fuga, não para de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da dependência, do dopar-se, da dose e do traficante. Mesmo que em sua forma flexível ela possa mobilizar gradientes e limiares de percepção de modo a determinar devires-animais, devires-moleculares, tudo se faz ainda numa relatividade de limiares que se contenta em imitar um plano de consistência em vez de traçá-lo num limiar absoluto. Para que serve perceber tão depressa quanto um pássaro rápido, se a velocidade e o movimento continuam a fugir alhures? As desterritorializações permanecem relativas, compensadas pelas reterritorializações as mais abjetas, de modo que o imperceptível e a percepção não param de perseguir-se ou de correr um atrás do outro sem nunca acoplar-se de fato. Em vez de os buracos no mundo permitirem que as próprias linhas do mundo fujam, as linhas de fuga enrolam-se e põem-se a rodopiar em buracos negros, cada drogado em seu buraco, grupo ou indivíduo, como um caramujo. Caindo mais no buraco do que no barato. As micropercepções moleculares são recobertas de antemão, conforme a droga considerada, por alucinações, delírios, falsas percepções, fantasmas, surtos paranoicos, restaurando a cada instante formas e sujeitos, como fantasmas ou duplos que não parariam de obstruir a construção do plano. Bem mais, é como ouvimos anteriormente na enumeração dos perigos: o plano de consistência não só corre o risco de ser traído ou desviado sob a influência de outras causalidades que intervém num tal agenciamento, mas o próprio plano engendra seus próprios perigos de acordo com os quais ele se desfaz ao longo de sua construção. Não somos mais, ele mesmo não é mais senhor das velocidades. Em vez de fazer um corpo sem órgãos suficientemente rico ou pleno para que as intensidades passem, as drogas erigem um corpo vazio ou vitrificado, ou um corpo canceroso: a linha causal, a linha criadora ou de fuga, vira imediatamente linha de morte e de abolição. A abominável vitrificação das veias, ou a purulência do nariz, o corpo vítreo do drogado. Buracos negros e linhas de morte, as advertências de Artaud e de Michaux se juntam (mais técnicas, mais consistentes do que o discurso sócio-psicológico, ou psicanalítico, ou informacional, dos centros de assistência e de tratamento). Artaud dizendo: você não evitará as alucinações, as percepções errôneas, os fantasmas descarados ou os maus sentimentos, como tantos buracos negros nesse plano de consistência, pois tua consciência irá também nessa direção cheia de armadilhas [Nota de rodapé 56: Artaud, Les Tarakumaras, (Euvres complètes, t. IX, pp. 34-36.]. Michaux dizendo: você não será mais senhor de tuas velocidades, você entrará numa corrida louca do imperceptível e da percepção, que gira mais em falso ainda porque tudo aí é relativo [Nota de rodapé 57: Michaux, Misérable miracle, p. 164 (“Rester maitre de sa vitesse”).]. Você irá inchar de si mesmo, perder o controle, estar num plano de consistência, num corpo sem órgãos, mas exatamente no lugar onde você não parará de deixá-los escapar, esvaziar, e de desfazer o que você faz, farrapo imóvel. Que palavras mais simples do que “percepções errôneas” (Artaud), “maus sentimentos” (Michaux), para dizer no entanto a coisa mais técnica: como a causalidade imanente do desejo, molecular e perceptiva, fracassa no agenciamento-droga. Os drogados não param de recair naquilo de que eles queriam fugir: uma segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma territorialização mais artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas, formas alucinatórias e subjetivações fantasmáticas. Os drogados podem ser considerados como precursores ou experimentadores que retraçam incansavelmente um novo caminho de vida; mas mesmo sua prudência não tem as condições da prudência. Então, ou eles recaem na coorte de falsos heróis que seguem o caminho conformista de uma pequena morte e um longo cansaço. Ou então, pior ainda, eles só terão servido para lançar uma tentativa que só pode ser retomada e aproveitada por aqueles que não se drogam ou que não se drogam mais, que retificam secundariamente o plano sempre abortado da droga, e descobrem pela droga o que falta à droga para construir um plano de consistência. Seria o erro dos drogados o de partir do zero a cada vez, seja para tomar droga, seja para abandoná-la, quando se precisaria partir para outra coisa, partir “no meio”, bifurcar no meio? Conseguir embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller). Conseguir drogar-se, mas por abstenção, “tomar e abster-se, sobretudo abster-se”, eu sou um bebedor de água (Michaux). Chegar ao ponto onde a questão não é mais “drogar-se ou não”, mas que a droga tenha mudado suficientemente as condições gerais da percepção do espaço e do tempo, de modo que os não-drogados consigam passar pelos buracos do mundo e sobre as linhas de fuga, exatamente no lugar onde é preciso outros meios que não a droga. Não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga que permite ficar sem ela. É covardia, coisa de aproveitador, esperar que os outros tenham se arriscado? Antes retomar uma empreitada sempre pelo meio, mudar seus meios. Necessidade de escolher, de selecionar a boa molécula, a molécula de água, a molécula de hidrogênio ou de hélio. Não é uma questão de modelo, todos os modelos são molares: é preciso determinar as moléculas e as partículas em relação às quais as “vizinhanças” (indiscernibilidade, devires) engendram-se e se definem. O agenciamento vital, o agenciamento-vida, é teoricamente ou logicamente possível com toda espécie de moléculas, por exemplo o silício. Mas acontece que esse agenciamento não é maquinicamente possível com o silício: a máquina abstrata não o deixa passar, porque ele não distribui as zonas de vizinhança que constroem o plano de consistência [Nota de rodapé 58: Sobre as possibilidades do silício, e sua relação com o carbono, do ponto de vista da química orgânica, cf. o artigo “Silicium” in Encyclopedia Universalis.]. Veremos que as razões maquínicas são totalmente diferentes das razões ou possibilidades lógicas. Não se trata de conformar-se a um modelo, mas de insistir numa linha. Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa linha. Toscos demais para captar o imperceptível, e para devir imperceptíveis, eles acreditaram que a droga lhes daria o plano, quando é o plano que deve destilar suas próprias drogas, permanecer senhor das velocidades e das vizinhanças. (Deleuze e Guattari 1997:79-81)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997 [1980]. 1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. (Trad.: Suely Rolnik) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 4. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.11-113.