Ferro e cobre em Deleuze e Guattari (1997 [1980])

Os povos da estepe são menos conhecidos em seu regime político, econômico e social do que nas inovações guerreiras que trazem, do ponto de vista das armas ofensivas e defensivas, do ponto de vista da composição ou da estratégia, do ponto de vista dos elementos tecnológicos (sela, estribo, ferragem, arreio…). A história sempre contesta, mas não chega a apagar os rastros nômades. O que os nômades inventam é o agenciamento homem-animal-arma, homem-cavalo-arco. Através desse agenciamento de velocidade, as idades do metal são marcadas por inovações. O machado de bronze de encaixe dos hicsos, a espada de ferro dos hititas puderam ser comparadas a pequenas bombas atômicas. Pôde-se fazer uma periodização bastante precisa das armas da estepe, mostrando as alternâncias de armamento pesado e leve (tipo cita e tipo sármata), e suas formas mistas. O sabre em aço fundido, com frequência curvo e truncado, arma de talho e oblíqua, envolve um espaço dinâmico diferente do da espada em ferro forjado, estoque e de frente: os citas o levam à índia e à Pérsia, de onde os árabes o recolherão. Admite-se que os nômades perdem seu papel inovador com o surgimento das armas de fogo, sobretudo o canhão (“a pólvora de canhão venceu a rapidez deles”). Mas não necessariamente porque não souberam utilizá-los: não só exércitos como o turco, cujas tradições nômades permanecem vivas, desenvolverão um enorme poder de fogo, um novo espaço; mas, de maneira ainda mais característica, a artilharia leve se integrava muito bem nas formações móveis de carros, nos navios piratas, etc. Se o canhão marca um limite dos nômades, é antes porque implica um investimento econômico que só um aparelho de Estado pode fazer (mesmo as cidades comerciais não serão suficientes). Resta o fato de que, para as armas brancas, e até mesmo para o canhão, reencontramos constantemente um nômade no horizonte de tal ou qual linhagem tecnológica. [Nota de rodapé 79: Lynn White, que, contudo, não é favorável ao poder de inovação dos nômades, estabelece por vezes linhagens tecnológicas amplas cuja origem é surpreendente: técnicas de ar quente e de turbinas, que viriam da Malásia (Technologie médiévale et transformations sociales, Mouton, pp. 112-113: “Desse modo, pode-se descobrir uma cadeia de estímulos técnicos a partir de algumas grandes figuras da ciência e da técnica do início dos tempos modernos, passando pelo fim da Idade Média, até as selvas da Malásia. Uma segunda invenção malásia, o pistão, sem dúvida exerceu uma influência importante no estudo da pressão do ar e de suas aplicações”).] (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:84-5)

De nada serviria dizer que a metalurgia é uma ciência porque descobre leis constantes, por exemplo a temperatura de fusão de um metal em qualquer tempo, em qualquer lugar. Pois a metalurgia é, sobretudo, indissociável de diversas linhas de variação: variação dos meteoritos e dos metais brutos; variação dos minerais e das proporções de metal; variação das ligas, naturais ou não; variação das operações efetuadas num metal; variação das qualidades que tornam possível tal ou qual operação, ou que decorrem de tal ou qual operação. (Por exemplo, doze variedades de cobre discriminadas e recenseadas na Suméria, segundo os lugares de origem, os graus de refino.) [Nota de rodapé 82: Henri Limet, Le travail du métal au pays de Sumer au temps de la IIIe dynastie d’Ur, Les Belles Lettres, pp. 33-40.] Todas essas variáveis podem ser agrupadas sob duas grandes rubricas: as singularidades ou hecceidades espaço-temporais, de diferentes ordens, e as operações que a elas se conectam como processos de deformação ou de transformação; as qualidades afetivas ou traços de expressão de diferentes níveis, que correspondem a essas singularidades e operações (dureza, peso, cor, etc). Retornemos ao exemplo do sabre, ou de preferência do aço ao cadinho: ele implica a atualização de uma primeira singularidade, a fusão do ferro em alta temperatura; depois, uma segunda singularidade, que remete às descarburizações sucessivas; alguns traços de expressão correspondem a essas singularidades, não apenas a dureza, o cortante, o polido, mas igualmente as ondas ou desenhos traçados pela cristalização, resultantes da estrutura interna do aço fundido. A espada de ferro remete a singularidades inteiramente distintas, já que é forjada e não fundida, moldada, temperada e não resfriada ao ar, produzida peça por peça e não fabricada em série; seus traços de expressão são necessariamente muito diferentes, visto que ela trespassa em vez de talhar, ataca de frente e não de viés; e mesmo os desenhos expressivos são obtidos aí de uma maneira completamente diferente, por incrustação. [Nota de rodapé 83: Mazaheri mostra bem, nesse sentido, como o sabre e a espada remetem a duas linhagens tecnológicas distintas. Especialmente a adamascagem, que não provém em absoluto de Damasco, mas do termo grego ou persa que significa diamante, designa o tratamento do aço fundido que o torna tão duro quanto o diamante, e os desenhos que se produzem nesse aço por cristalização cementita (“o verdadeiro damasco se fazia nos centros que nunca tinham sofrido a dominação romana”). Porém, de outro lado, a damasquinagem, proveniente de Damasco, designa apenas incrustações sobre metal (ou sobre tecido), que são como desenhos voluntários que imitam a adamascagem com meios inteiramente diferentes] É possível falar de um phylum maquínico, ou de uma linhagem tecnológica, a cada vez que se depara com um conjunto de singularidades, prolongáveis por operações, que convergem e as fazem convergir para um ou vários traços de expressão assinaláveis. Se as singularidades ou operações divergem, em materiais diferentes ou no mesmo, é preciso distinguir dois phylums diferentes: por exemplo, justamente para a espada de ferro, proveniente do punhal, e o sabre de aço, proveniente da faca. Cada phylum tem suas singularidades e operações, suas qualidades e traços, que determinam a relação do desejo com o elemento técnico (os afectos “do” sabre não são os mesmos que os da espada). (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:86-8)

O ferreiro não é nômade entre os nômades e sedentário entre os sedentários, ou semi-nômade entre os nômades, semi-sedentário entre os sedentários. Sua relação com os outros decorre de sua itinerância interna, de sua essência vaga, e não o inverso. É na sua especificidade, é por ser itinerante, c por inventar um espaço esburacado que ele se comunica necessariamente com os sedentários c com os nômades (e ainda com outros, com os florestanos transumantes). É em si mesmo, antes de tudo, que é duplo: um híbrido, uma liga, uma formação gemelar. Como diz Griaule, o ferreiro dogon não é um “impuro”, mas um “misturado”, e é por ser misturado que ele é endogâmico, que não se casa com os puros que têm uma geração simplificada, ao passo que ele próprio reconstitui uma geração gemelar. [Nota de rodapé 95: M. Griaule e G. Dieterlen, Le renard pâle, Institut d’ethnologie, p. 376.] Gordon Childe mostra que o metalúrgico se desdobra necessariamente, existe duas vezes, uma como personagem capturado e protegido pelo aparelho do império oriental, uma outra vez como personagem muito mais móvel e livre no mundo egeu. Ora, não se pode separar um segmento do outro, referindo cada um dos segmentos apenas a seu contexto particular. O metalúrgico de império, o operário, supõe um metalúrgico-prospector, mesmo muito longínquo, e o prospector remete a um comerciante, que trará o metal ao primeiro. Bem mais, o metal é trabalhado em cada segmento, e a forma-lingote atravessa todos eles: mais do que segmentos separados, é preciso imaginar uma cadeia de ateliês móveis que constituem, de buraco em buraco, uma linha de variação, uma galeria. A relação que o metalúrgico entretém com os nômades e com os sedentários passa, pois, também pela relação que ele entretém com outros metalúrgicos. [Nota de rodapé 96: O livro de Forbes, Metallurgy in Antiquity, Ed. Brill, analisa as diferentes idades da metalurgia, mas também os tipos de metalúrgico na idade do minério: o “mineiro”, prospector e extrator, o “fundidor”, o “ferreiro” (blacksmith), o “metaleiro” (whitesmith). A especialização se complica ainda mais com a idade do ferro, e as divisões nômade-itinerante-sedentário variam simultaneamente.] É esse metalúrgico híbrido, fabricante de armas e ferramentas, que se comunica ao mesmo tempo com os sedentários e com os nômades. O espaço esburacado comunica-se por si mesmo com o espaço liso e com o espaço esfriado. Com efeito, o phylum maquínico ou a linha metálica passam por todos os agenciamentos; nada é mais desterritorializado que a matéria-movimento. Porém, essa comunicação de modo algum se produz da mesma maneira, e as duas comunicações não são simétricas. Worringer dizia, no domínio estético, que a linha abstrata possuía duas expressões muito diferentes, uma no gótico bárbaro, a outra no clássico orgânico. Diríamos que o phylum tem simultaneamente dois modos de ligação diferentes: é sempre conexo ao espaço nômade, ao passo que se conjuga com o espaço sedentário. Do lado dos agenciamentos nômades e das máquinas de guerra, é uma espécie de rizoma, com seus saltos, desvios, passagens subterrâneas, caules, desembocaduras, traços, buracos, etc. Mas, no outro lado, os agenciamentos sedentários e os aparelhos de Estado operam uma captura do phylum, tomam os traços de expressão numa forma ou num código, fazem ressoar os buracos conjuntamente, colmatam as linhas de fuga, subordinam a operação tecnológica ao modelo do trabalho, impõem às conexões todo um regime de conjunções arborescentes. (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:98-100)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997 [1980]. 1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. (Trad.: Peter P. Pelbart) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 5. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.11-110.