Estanho em Deleuze e Guattari (1997 [1980])

A arqueologia e a história mantêm-se estranhamente discretas sobre essa questão do controle das minas. Acontece de impérios com forte organização metalúrgica não possuírem minas; o Oriente Médio não tem estanho, tão necessário à fabricação do bronze. Muito metal chega sob forma de lingotes, e de muito longe (como o estanho da Espanha ou até da Cornualha). Uma situação tão complexa não implica apenas uma forte burocracia imperial e circuitos comerciais longínquos e desenvolvidos. Implica toda uma política movente, em que Estados afrontam um fora, em que povos muito diferentes se afrontam ou, então, se põem de acordo para o controle das minas, e sob tal ou qual aspecto (extração, carvão de madeira, ateliês, transporte). Não basta dizer que há guerras e expedições mineiras; nem invocar “uma síntese eurasiática dos ateliês nômades desde os arredores da China até os Finistérios ocidentais”, e constatar que desde a pré-história “as populações nômades estão em contato com os principais centros metalúrgicos do mundo antigo”. [Nota de rodapé 90: Maurice Lombard, Les métaux dans l’ancien monde du Ve au XIe siècle, Mouton, pp. 75, 255.] Seria preciso conhecer melhor as relações dos nômades com esses centros, com os ferreiros que eles mesmos empregam, ou frequentam, com povos e grupos propriamente metalúrgicos que são seus vizinhos. Qual é a situação no Cáucaso e no Altai? na Espanha e na África do Norte? As minas são uma fonte de fluxo, de mistura e de fuga, que quase não têm equivalente na história. Mesmo quando são bem controladas por um império que as possui (caso do império chinês, caso do império romano), há um movimento muito importante de exploração clandestina, e alianças de mineiros seja com as incursões nômades e bárbaras, seja com as revoltas camponesas. O estudo dos mitos, e até as considerações etnográficas sobre o estatuto dos ferreiros, nos desviam dessas questões políticas. É que a mitologia e a etnologia não possuem um bom método a esse respeito. Pergunta-se com demasiada frequência como os outros “reagem” diante dos ferreiros: cai-se então em todas as banalidades concernentes à ambivalência do sentimento, diz-se que o ferreiro é ao mesmo tempo honrado, temido e desprezado, mais desprezado entre os nômades, mais honrado entre os sedentários. [Nota de rodapé 91: A situação social do ferreiro foi objeto de análises detalhadas, sobretudo no caso da África: cf. o estudo clássico de W. Cline, “Mining and Metallurgy in Negro África” (General Series in Anthropology, 1937); e Pierre Clément, “Le forgeron en Afrique noire” (Revue de géographie humaine et d’ethnologie, 1948). Mas esses estudos são pouco conclusivos; pois tanto os princípios invocados são bem distintos, “reação depreciativa”, “aprovadora”, “apreensiva”, quanto os resultados são vagos e se misturam, como testemunham as descrições de P. Clément.]. Mas, desta forma, perde-se as razões dessa situação, a especificidade do próprio ferreiro, a relação não simétrica que ele mesmo entretém com os nômades e com os sedentários, o tipo de afectos que ele inventa (o afecto metálico). Antes de buscar os sentimentos dos outros pelo ferreiro, é preciso primeiramente avaliar o ferreiro ele mesmo como um Outro, e como tendo, a esse título, relações afetivas diferentes com os sedentários, com os nômades. (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:95-7)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997 [1980]. 1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. (Trad.: Peter P. Pelbart) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 5. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.11-110.