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Porque Simondon é anticapitalista sem falar em capitalismo

Porque Simondon é anticapitalista sem falar em capitalismo

Por meio do objeto técnico se cria […] uma relação interhumana que é o modelo da transindividualidade. Isso pode ser entendido como uma relação que não coloca os indivíduos em relação por meio de suas individualidades constituídas (separando-os uns dos outros), e nem por meio daquilo que existe de idêntico em todo sujeito humano (por exemplo, as formas a priori da sensibilidade), mas por meio dessa carga de realidade pré-individual, dessa carga de natureza que é conservada com o ser individual, e que contém potenciais e virtualidade. O objeto que resulta da invenção técnica traz consigo algo do ser que o produziu, exprime deste ser aquilo que, nele, é menos ligado a um hic et nunc [aqui e agora]; poderíamos dizer que existe algo da natureza humana no ser técnico, desde que a palavra natureza designe isso que permanece de original, de anterior mesmo à humanidade constituída no ser humano; o ser humano inventa e coloca em funcionamento seu próprio suporte natural, esse ἄπειρον [ápeiron] que permanece ligado a cada ser individual. Nenhuma antropologia que parta do homem como ser individual pode dar conta da relação técnica transindividual. O trabalho, entendido como produtivo, na medida em que provém do indivíduo localizado hic et nunc, não pode dar conta do ser técnico inventado; não é o indivíduo que inventa, é o sujeito, mais vasto que o indivíduo, mais rico que ele, e comportando, para além da individualidade do ser individuado, uma certa carga de natureza, de ser não individuado. O grupo social de solidariedade funcional, como a comunidade de trabalho, só coloca em relação os seres individuados. Por isso, ele necessariamente os localiza e os aliena, inclusive fora de qualquer modalidade econômica do tipo descrito por Marx sob o nome de capitalismo: pode-se definir uma alienação pré-capitalista, essencial ao trabalho enquanto trabalho. […] Não queremos dizer que a alienação econômica não existe; mas pode ser que a principal causa de alienação esteja essencialmente no trabalho, e que a alienação descrita por Marx não passe de uma das modalidades dessa alienação: a noção de alienação merece ser generalizada, de forma a situar o seu aspecto econônico; se fizermos isso, a alienação econômica estaria já no nível das superestruturas, e suporia um fundamento mais implícito, que é a alienação essencial envolvida na situação do ser individual no trabalho. (Gilbert Simondon. 2008. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, pp.248-9).

Aqui Simondon argumenta que o trabalho é uma relação individual (orgânica, vital) com o mundo, e que a relação transindividual (coletiva, subjetiva, propriamente humana) com o mundo não corresponde ao trabalho, e sim à invenção (que é coletiva-subjetiva). O capitalismo, aqui, aparece como uma consequência, um desdobramento, da manutenção-continuação, em seres já potencialmente humanos, de uma relação ainda não propriamente humana com o mundo (i.e., mediada pelo trabalho individual). Muito importante aqui me parece ser o uso da expressão hic et nunc (aqui e agora) para precisar que: aquilo que há de humano no objeto técnico corresponde àquilo que o humano compartilha com o mundo não humano, a sua interface com esse mundo, algo que sempre existiu, mas que o objeto técnico torna mediável.

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