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O fato social elementar em Tarde (2011)

O fato social elementar em Tarde (2011)

TARDE, Gabriel. 2011. As leis sociais: um esboço de sociologia. (Trad.: Francisco T. Fuchs) Niterói: Editora da UFF. [1898]

PORMENORES-INFINITESIMAL (com referência à ideia de elementos químicos)

Eu creio que é impossível explicar as dessemelhanças às quais me refiro – mesmo que fossem apenas essas desigualdades de posição e essa caprichosa distribuição de matéria através do espaço – pela hipótese, tão cara aos químicos (que são, quanto a isso, os verdadeiros metafísicos), de elementos atômicos perfeitamente semelhantes. Creio que a pretensa lei de Spencer sobre a instabilidade do homogêneo nada explica, e que, por consequência, a única maneira de explicar a floração de exuberantes diversidades à superfície dos fenômenos é admitir no fundo das coisas uma tumultuosa infinidade de elementos caracterizados individualmente. Assim, do mesmo modo que as similitudes de massa foram resolvidas em similitudes de pormenor, as diferenças de massa, grosseiras e bem visíveis, se transformaram em diferenças de pormenor infinitamente sutis. E assim como as similitudes de pormenor permitem explicar por si mesmas as similitudes de conjunto, as diferenças de pormenor, essas originalidades elementares e invisíveis que eu vislumbro, permitem igualmente explicar por si mesmas as diferenças aparentes e grandiosas, o pitoresco do universo visível. (Tarde 2011:26)

HEREDITARIEDADE (hábito exteriorizado) COMO REPETIÇÃO VITAL

E a biologia, síntese da zoologia e da botânica, nasceu no dia em que a teoria celular mostrou que, tanto nos animais como nas plantas, a célula era o elemento infinitamente repetido, primeiramente a célula germinal, e depois todas as outras que dela procedem; e que o fenômeno vital elementar é a repetição indefinida, em cada célula, dos modos de nutrição e de atividade, de crescimento e de proliferação, cujo depósito tradicional ela recebeu de herança e transmitirá fielmente à sua posteridade. Essa conformidade aos precedentes que se chama de hábito ou de hereditariedade – digamos, numa palavra, hereditariedade, já que o hábito é uma hereditariedade interna e a hereditariedade é um hábito exteriorizado – é a forma propriamente vital da repetição; tal como a ondulação ou, em geral, o movimento periódico, é sua forma física, tal como a imitação, como veremos, é sua forma social. (Tarde 2011:27)

O FATO SOCIAL ELEMENTAR é INTER-CEREBRAL

Felizmente, à sombra e ao abrigo dessas ambiciosas generalizações, trabalhadores mais modestos se esforçavam, com mais sucesso, para anotar leis de pormenor de uma solidez bem diferente. Eles eram linguistas, mitólogos, sobretudo economistas. Esses especialistas da sociologia perceberam várias relações interessantes entre fatos consecutivos ou concomitantes, relações que se reproduziam a cada instante nos limites do pequeno domínio que eles estudavam: encontra-se na Riqueza das Nações de Adam Smith, na Gramática comparada das línguas indo-européias de Bopp e na obra de Dietz, para ficar nesses três exemplos, uma enorme quantidade de observações desse gênero, nas quais se exprime uma similitude entre inumeráveis ações humanas como a pronúncia de certas consoantes ou de certas vogais, as compras e as vendas, a produção e o consumo de certos artigos, etc. É verdade que essas similitudes, nelas mesmas, deram lugar a leis imperfeitas, relativas ao plerumque fit, quando os linguistas ou economistas tentaram formulá-las em leis; mas é porque se teve demasiada pressa para enunciá-las, antes mesmo de se discernir, no seio dessas verdades parciais, a verdade geral que elas implicam, o fato social elementar que a sociologia persegue obscuramente e que ela deve atingir para realizar-se. […] Muitas vezes pressentiu-se que essa explicação geral das leis ou pseudo-leis (econômicas, linguísticas, mitológicas ou outras) cabia à psicologia. Ninguém compreendeu isso com mais força e clareza do que Stuart Mill. No fim de sua Lógica, ele concebeu a sociologia como a psicologia aplicada. O problema é que ele não exprimiu seu pensamento com suficiente precisão, e a psicologia à qual ele se dirigiu para obter a chave dos fenômenos sociais era a psicologia meramente individual, aquela que estuda as relações internas entre impressões ou imagens no interior de um mesmo cérebro, e que acredita dar conta de tudo, nesse domínio, pelas leis de associação desses elementos internos. Assim concebida, a sociologia se tornava uma espécie de associacionismo inglês aumentado e exteriorizado, e perdia sua originalidade. Não é exatamente ou unicamente a essa psicologia intra-cerebral, é antes de tudo à psicologia inter-cerebral, que estuda o estabelecimento de relações conscientes entre muitos indivíduos, que convém pedir o fato social elementar, cujos grupamentos ou combinações múltiplas constituem os fenômenos ditos simples, objetos das ciências sociais particulares. O contato de um espírito com outro é, com efeito, na vida de cada um deles, um acontecimento à parte, que se destaca vivamente do conjunto de seus contatos com o resto do universo e dá lugar aos estados de alma mais imprevisíveis (e mais inexplicáveis pela psicologia fisiológica). (Tarde 2011:30-1)

QUANTIFICAÇÃO, SOCIOLOGIA e ESTATÍSTICA

Quando eu disse que toda ciência verdadeira chega a um domínio próprio de repetições elementares, inumeráveis e infinitesimais, é como se eu já houvesse dito que toda ciência verdadeira fundamenta-se em quantidades que lhe são específicas. A quantidade, com efeito, é a possibilidade de séries infinitas e de repetições infinitamente pequenas. Eis porque eu me permiti insistir sobre o caráter quantitativo das duas energias mentais que, como dois rios divergentes, banham a dupla face do eu, sua atividade mental e sua atividade voluntária. Negar esse caráter é declarar a impossibilidade da sociologia. Mas não se pode negá-lo sem recusar a evidência, e esta é a prova de que as quantidades em questão são propriamente sociais: sua natureza quantitativa aparece tanto melhor, e fere o espírito com maior vivacidade e clareza, quando são consideradas em massas mais amplas, sob a forma de correntes de fé ou de paixão popular, de convicções tradicionais ou opiniaticidades costumeiras, abraçando grupos humanos mais numerosos. Quanto mais cresce uma coletividade, e mais se eleva ou apequena uma opinião, ou seja, a crença ou o querer nacional, afirmativo ou negativo, em relação a um objeto dado – alta ou baixa exemplarmente expressa pelas cotações da Bolsa – mais ela se torna suscetível de medida e comparável aos movimentos de pressão atmosférica ou à força viva de uma queda d’água. É por isso que a estatística se desenvolve com crescente facilidade à medida que os Estados crescem; o êxito da estatística, cujo objeto próprio é pesquisar e discernir quantidades verdadeiras na barafunda dos fatos sociais, é proporcional à sua obstinação de medir, no fundo, por meio dos atos humanos que adiciona, massas de crenças e de desejos. A estatística dos valores da Bolsa exprime as variações da confiança pública no sucesso de tais ou tais empresas, na solvência de tais ou tais Estados devedores, e as variações do desejo público, do interesse público, ao qual se dá satisfação por essas dívidas e por essas empresas. A estatística industrial e agrícola exprime a importância das necessidades gerais que reclamam a produção de tais ou tais artigos e a suposta conveniência dos meios necessários para satisfazê-las. A consulta da estatística judiciária, em suas enumerações de processos e delitos, só é interessante porque a travessia de suas linhas permite, ano após ano, a leitura da progressão ou regressão dos desejos públicos engajados em vias processuais ou delituosas: por exemplo, a tendência ao divórcio ou ao roubo, e também a proporção de esperanças públicas voltadas para certos processos ou delitos. A estatística populacional, que sob muitos aspectos é meramente biológica e diz respeito à propagação da espécie, também é sociológica na medida em que diz respeito à duração e aos progressos das instituições sociais, e exprime o crescimento ou o decréscimo do desejo de paternidade e de maternidade, bem como da crença geral de que a felicidade é obtida a partir do casamento e das uniões fecundas. (Tarde 2011:33-4)

FATO SOCIAL e IMITAÇÃO

Voltemos ao casal social elementar que mencionei anteriormente, não o casal do homem e da mulher que se amam – esse casal, considerado do ponto de vista sexual, é puramente vital – mas o casal de duas pessoas, seja qual for o sexo a que elas pertencem, no qual uma age espiritualmente sobre a outra. Eu afirmo que a relação entre essas duas pessoas é o elemento único e necessário da vida social, e que ele consiste sempre, originalmente, em uma imitação de um pelo outro. […] O incontestável é que dizendo, fazendo, pensando não importa o que, uma vez engajados na vida social, nós imitamos outrem a cada instante, a menos que nós inovemos, o que é raro; e ainda é fácil mostrar que nossas inovações são, em sua maior parte, combinações de exemplos anteriores, e que elas permanecem estranhas à vida social enquanto não forem imitadas. […] Assim, o caráter constante de um fato social, seja ele qual for, é imitativo; e esse caráter é próprio e exclusivo dos fatos sociais. […] Com efeito, não é evidente que povos rivais ou mesmo inimigos tendem a se fundir à medida que assimilam suas instituições? Assim, é certo que cada novo ato de imitação tende a conservar ou fortificar o laço social, não apenas entre indivíduos já associados, mas também entre indivíduos ainda não associados, de modo que a imitação prepara a associação de amanhã, ou seja, tece agora, por meio de fios invisíveis, aquilo que irá se tornar um laço manifesto. (Tarde 2011:35-7)

SOCIOLOGIA MODERNA é INFINITESIMAL

O que eu tenho a ressaltar no momento é que a sociologia, assim compreendida, difere das antigas concepções que reinavam sob esse nome tal como a astronomia moderna difere da dos gregos, ou tal como a biologia, a partir da teoria celular, difere da história natural de outrora. Dito de outro modo, ela repousa sobre um fundamento de similitudes e de repetições elementares e verdadeiras, infinitamente numerosas e extremamente precisas, que substituíram, como matéria primeira da elaboração científica, um pequeno número de falsas ou vagas – e decepcionantes – analogias. (Tarde 2011:38-9)

O ANTI-DURKHEIM

Em resumo, essa concepção é quase o inverso da concepção professada pelos evolucionistas unilineares e também por Durkheim: ao invés de explicar tudo pela pretensa imposição de uma lei de evolução que constrangeria os fenômenos de conjunto a se reproduzir, a se repetir identicamente numa certa ordem, ao invés de explicar o pequeno pelo grande, o detalhe pelo conjunto, eu explico as similitudes de conjunto pela acumulação de pequenas ações elementares, o grande pelo pequeno, o conjunto pelo pormenor. Essa maneira de ver está destinada a produzir na sociologia as mesmas transformações que a introdução da análise infinitesimal produziu na matemática. (Tarde 2011:39 nota 25)

FAZER A CIÊNCIA SOCIAL A PARTIR DAS CIÊNCIAS SOCIAIS (o anti-organicista)

Antes que se descobrisse algum fato astronômico elementar, como a atração descrita pela lei newtoniana, ou pelo menos a gravitação elíptica, houve conhecimentos astronômicos heterogêneos – uma ciência da Lua, selenologia, uma ciência do Sol, heliologia – mas não a astronomia. Antes que se descobrisse um fato químico elementar (afinidades, combinações em proporções definidas), houve conhecimentos químicos, químicas especiais, do ferro, do estanho, do cobre, etc., mas não a química. Antes que se descobrisse o fato físico essencial – a comunicação ondulatória do movimento molecular – houve conhecimentos físicos: ótica, acústica, termologia, eletrologia, mas não a física. A física tornou-se físico-química, a ciência da natureza inorgânica inteira, quando entreviu a possibilidade de explicar tudo pelas leis fundamentais da mecânica, ou seja, quando acreditou descobrir, como fato inorgânico elementar, a reação igual e contrária à ação, a conservação da energia, a redução de todas as forças em formas de movimento, o equivalente mecânico do calor, da eletricidade, da luz, etc. Enfim, antes da descoberta das analogias existentes, do ponto de vista da reprodução, entre os animais e as plantas, nem mesmo havia uma botânica e uma zoologia, mas botânicas e zoologias, ou seja, uma hipologia, uma cinologia, etc. Mas a descoberta de similitudes só conferia uma unidade muito parcial a todas essas ciências esparsas, a esses membra disjecta da futura biologia. A biologia somente nasceu de fato quando a teoria celular veio mostrar o fato vital elementar, o funcionamento da célula (ou do elemento histológico) e sua proliferação, perpetuada pelo óvulo, ele mesmo célula, de modo que a nutrição e a geração passaram a ser encaradas sob um mesmo ângulo. […] Muito bem, trata-se agora de fazer, similarmente, a ciência social a partir das ciências sociais. Já houve, com efeito, ciências sociais, ao menos esboçadas, prelúdios de ciência política, de linguística, de mitologia comparada, de estética, de moral, uma economia política já bem avançada, muito antes que houvesse o embrião de uma sociologia. A sociologia supõe um fato social elementar. E ela o supõe com tal força que, enquanto não havia chegado a descobri-lo – talvez porque ele estivesse na sua cara, se me perdoam essa expressão – ela sonhava com ele, ela o imaginava sob a forma de uma dessas similitudes vãs e imaginárias que atravancam o berço de todas as ciências, e acreditava dizer algo de profundamente instrutivo ao conceber uma sociedade como um grande organismo, o indivíduo (ou, segundo outros, a família) como a célula social, e toda forma de atividade social como uma função de tipo celular. Eu já fiz os maiores esforços, juntamente com a maior parte dos sociólogos, para desembaraçar a ciência nascente dessa estorvante concepção. (Tarde 2011:41-2)

ELEMENTO MATEMÁTICO

[F]oi somente a partir da invenção do cálculo infinitesimal, quando se desceu até o elemento matemático indecomponível cujas repetições indefinidas tudo explicam, que a fecundidade matemática apareceu em sua plenitude. (Tarde 2011:44 nota 26)

FÍSICA e QUÍMICA (dos 4 elementos à tabela periódica)

A física e a química, tal como a astronomia, começaram com falsos contrários. Os quatro elementos concebidos pelos primeiros físicos se opunham dois a dois: a água e o fogo, o ar e a terra. Imaginavam-se antipatias inatas entre determinadas substâncias. Vieram à luz ideias mais sãs sobre a verdadeira natureza das oposições físicas e químicas quando se descobriu o caráter de algum modo oposto dos ácidos e bases, e sobretudo das eletricidades de nome contrário, assim como a polaridade luminosa. A ideia de polaridade, que desempenhou um papel tão grande nas teorias físico-químicas, marcou um enorme progresso sobre as concepções anteriores; e agora ela mesma está sendo explicada pela noção de ondulação, que a abrange ou está em vias de abranger. Assim como a luz, o calor e a eletricidade aparecem como propagações esféricas ou lineares de vibrações infinitesimais e infinitamente rápidas, a combinação química tende a ser considerada como um entrelaçamento de ondas harmoniosamente unidas: mas aqui nós já tocamos nos domínios da adaptação. Até mesmo a atração foi muitas vezes explicada por pressões de vibrações etéreas. Seja como for, é evidente que as gravitações elípticas dos astros, apesar da diferença de dimensão, são comparáveis às ondas físicas, esse vai-e-vem de moléculas segundo elipses muito alongadas, e que nos dois casos existe ritmo ondulatório. Em suma, podemos ver como o progresso das ciências estendeu e aprofundou o campo da oposição, substituindo vagas oposições qualitativas por oposições quantitativas precisas e ritmadas, tecido da teia do mundo. A maravilhosa simetria das formas cristalinas próprias a cada substância química é a tradução gráfica, a expressão visual dessas oposições rítmicas entre os inumeráveis movimentos que a constituem. E não seria precisamente a essa ritmicidade dos movimentos interiores dos corpos que se deveria pedir a explicação última da lei de Mendeleev, que nos mostra os grupos de substâncias formando escalas superpostas e periodicamente repetidas, teclado ao qual faltam, aqui e ali, algumas teclas que descobriremos com o passar do tempo? (Tarde 2011:51)

HESITAÇÃO INDIVIDUAL e REVOLUÇÃO SOCIOLÓGICA

Os economistas já prestaram um valoroso serviço à ciência social substituindo a guerra, como fator-chave da história, pela concorrência, espécie de guerra não apertas adocicada e atenuada, mas ao mesmo tempo reduzida e multiplicada. Por fim, se nosso ponto de vista for adotado, será preciso considerar que, no âmago daquilo que os economistas chamam de concorrência dos consumidores ou dos coprodutores, existe uma concorrência de desejos e de crenças; e se essa luta que constatamos entre as formas industriais for generalizada e estendida a todas as formas linguísticas, religiosas, políticas, artísticas e morais da vida social, veremos que a verdadeira oposição social elementar deve ser buscada no próprio seio de cada indivíduo social sempre que ele hesita entre adotar ou rejeitar um novo modelo que lhe é proposto: uma nova locução, um novo rito, uma nova ideia, uma nova escola de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa pequena batalha interna, que se reproduz milhões de vezes a cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e infinitamente fecunda da história. Ela introduz em sociologia uma tranquila e profunda revolução. (Tarde 2011:55)

RAIOS IMITATIVOS, IRRADIAÇÃO IMITATIVA e HESITAÇÃO COMO FATO SOCIAL ELEMENTAR

Eis porque eu tinha razão ao dizer que é preciso buscar a oposição social elementar, porém não, como se poderia acreditar à primeira vista, na relação entre dois indivíduos que se contradizem ou se contrariam, e sim nos duelos lógicos e teológicos, nos combates singulares de teses e antíteses, de quereres e não-quereres cujo teatro é a consciência do indivíduo social. Sem dúvida é possível que me perguntem: mas então qual é a diferença entre a oposição simplesmente psicológica e a oposição social? Ela é diferente em virtude de sua causa e, sobretudo, pelos seus efeitos. Em virtude da causa: um solitário recebe em seus sentidos duas percepções aparentemente contraditórias, e hesita entre dois juízos sensitivos: um que lhe diz que determinada mancha vista a distância é um lago, outro que lhe diz o contrário; eis uma oposição interna cuja origem é inteiramente psicológica, e que é um caso infinitamente raro. Pode-se afirmar sem medo de errar que todas as dúvidas e hesitações de que sofre o mais isolado dos homens, nascido na mais selvagem das tribos, devem-se a um encontro nele ocorrido, seja entre dois raios de exemplos que vieram interferir em seu cérebro, seja pelo cruzamento entre um raio de exemplos e uma percepção dos sentidos. Ao escrever, eu hesito frequentemente entre duas locuções sinônimas, e cada uma delas apresenta-se como preferível à outra na circunstância dada: aqui, dois raios imitativos interferiram em mim, ou seja, duas séries de homens que, a partir do primeiro inventor de uma dessas palavras e do primeiro inventor da outra, chegaram até mim. Pois eu aprendi cada uma dessas palavras de um indivíduo que a aprendeu de outro, e assim por diante, remontando até o primeiro indivíduo que a pronunciou. (Mais uma vez, é isso que eu chamo de raio imitativo; e a totalidade de raios desse gênero, provenientes de um inventor, de um iniciador, de um inovador qual­ quer cujo exemplo se propagou, é o que eu chamo de irradiação imitativa. A vida social se compõe de um denso entrecruzamento de irradiações desse gênero, entre as quais ocorrem inumeráveis interferências.) Outros exemplos: eu sou juiz e hesito entre uma opinião que se funda sobre uma série de decisões baseadas nas orientações de determinado autor, por exemplo, Marcadé ou Demolombe, e uma opinião oposta que se apoia numa outra série de decisões emanadas de tal outro comentador; mais uma vez, interferência entre dois raios imitativos. A mesma coisa acontece quando eu hesito entre o gás e a eletricidade para iluminar meu apartamento. Mas quando um jovem camponês, diante do pôr do sol, não sabe se deve acreditar na palavra de seu professor (que lhe assegura que o cair da noite deve-se a um movimento da Terra e não do Sol) ou no testemunho de seus sentidos, que lhe dizem o contrário, existe um único raio imitativo que, por intermédio de seu professor, liga-o a Galileu. Tanto faz, pois isso basta para que sua hesitação, sua oposição interna e individual, seja social em virtude de sua causa. […] Mas é sobretudo pelos seus efeitos (ou melhor, por sua ineficácia) que a oposição simplesmente individual difere da oposição social elementar, que também é, entretanto, individual. Por vezes a hesitação do indivíduo permanece encerrada nele, e não se propaga (nem tende a se propagar) imitativamente entre seus vizinhos; nesse caso, o fenômeno permanece puramente individual. Na maioria dos casos, porém, a própria dúvida é quase tão contagiosa quanto a fé, e todo aquele que devém cético num meio fervoroso logo se tornará o foco de um ceticismo que irá irradiar-se ao seu redor: será possível, nesse caso, negar o caráter social do estado de luta interna que caracteriza cada um dos indivíduos desse grupo? (Tarde 2011:62-4)

FENÔMENOS SOCIAIS e CIÊNCIA têm SENTIDOS INVERSOS

Detenho-me para notar que, por causa dessa passagem do pequeno ao grande, do pequeno muito numeroso ao grande extremamente raro, a evolução da guerra, e de todo fenômeno social em geral, parece contradizer a evolução das ciências tal como vem sendo exposta aqui. No entanto, ela constitui, de fato, sua contra­ prova e confirmação. É justamente porque tudo no mundo dos fatos caminha do pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho invertido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno e, pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares verdadeiramente explicativos em último lugar. (Tarde 2011:67)

CONCORRÊNCIA, MONOPÓLIO e ASSOCIAÇÃO

Em resumo, a concorrência se desenvolve em círculos concêntricos que vão se ampliando. Mas a ampliação da concorrência tem como condição e como razão de ser a ampliação da associação. Da associação ou do monopólio, objetar-se-á. Que seja, mas o monopólio é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema da concorrência, assim como a unidade imperial é apenas uma das duas soluções possíveis para o problema da guerra. Um desses problemas pode ser resolvido pela associação dos indivíduos, assim como o outro pode ser resolvido pela confederação dos povos. De resto, o próprio monopólio, à força de estender-se, se torna mais brando, e caso ele se tornasse universal em certas modalidades de produção (termo ao qual ele tende e que Paul Leroy-Beaulieu julgou, erroneamente a meu ver, para sempre e absolutamente inatingível), seria provavelmente mais suportável, em certos casos, do que o estado de concorrência aguda que ele teria substituído. A concorrência tende a uma monopolização, ao menos parcial e relativa, ou a uma associação de concorrentes, tal como a guerra tende ao esmagamento do perdedor ou a um tratado favorável com ele, a uma pacificação igualmente parcial e relativa. O crescimento dos Estados conquistadores contribuiu para isso. Estou ciente de que os grandes Estados modernos, tomando o lugar dos feudos da Idade Média, fizeram reinar uma paz bastante incompleta, e até aqui bastante curta, mas cuja extensão e duração vão aumentando, tal como os exércitos grandiosos de hoje em dia. Negar que a concorrência culmine no monopólio (ou na associação) e imaginar que se está defendendo a concorrência de seus detratores é, ao contrário, recusar a única desculpa que se poderia alegar: como se, para defender o militarismo dos ataques de que ele é objeto, nos esforçássemos para demonstrar que a guerra não produz a paz depois da vitória. É bem verdade que a guerra só produz a paz para renascer da própria paz, e numa escala ainda maior; do mesmo modo, a concorrência só se apazigua momentaneamente na associação para renascer da própria associação, sob a forma de rivalidades entre associações, corporações, sindicatos e assim por diante; mas chega-se assim, finalmente, a associações gigantes que, não podendo mais expandir-se, só poderão, depois de travarem seus combates, associar-se. (Tarde 2011:72-3)

OPOSIÇÃO, ASSOCIAÇÃO e REPETIÇÃO

[É] repetindo-se por imitação que a invenção – a adaptação social elementar – se difunde e se fortifica, tendendo, pelo encontro de uma de suas irradiações imitativas com uma irradiação imitativa emanada de alguma outra invenção, antiga ou nova, a suscitar ora novas lutas, ora (diretamente ou por meio dessas lutas) novas e mais complexas invenções, que em breve também irão irradiar imitativamente, e assim por diante, ao infinito. Notemos que tanto o duelo lógico como a síntese lógica, tanto o elemento social da oposição-luta como o elemento social da adaptação têm necessidade da repetição imitativa para socializar-se, para generalizar-se e crescer. A única diferença é que a propagação imitativa do estado de discórdia interior entre duas ideias, ou mesmo do estado de discórdia exterior entre dois homens que escolheram uma dessas ideias, irá fatalmente sofrer um desgaste e pôr fim a essa discórdia dentro de um determinado tempo, pois todo combate é fatigante e culmina numa vitória; enquanto a propagação imitativa do estado de harmonia (ao mesmo tempo interno e externo) alcançado pela iluminação de uma nova verdade, síntese de nossos conhecimentos anteriores e comunhão de nosso espírito com todos os espíritos que comungam com ela, não tem razão alguma para deter-se e se fortificará ao avançar. Dos três termos comparados entre si, o primeiro e o último ultrapassam largamente o segundo em altura, em profundidade, em importância e talvez em duração. A única utilidade do segundo, a oposição, é a de provocar uma tensão das forças antagonistas aptas a suscitar o gênio inventivo: a invenção militar que, ao dar a vitória a um dos lados, momentaneamente põe fim à guerra; a invenção industrial que, adotada ou monopolizada por um dos rivais da indústria, lhe assegura o triunfo, e momentaneamente põe fim à concorrência; a invenção filosófica, científica, jurídica ou estética que interrompe bruscamente inumeráveis discussões, mesmo que seja para dar origem, mais tarde, a novas discussões. Eis aí a única utilidade, a única razão de ser da oposição; mas quantas vezes a invenção pela qual ela clama deixa de atender ao seu chamado! Quantas vezes a guerra abate o gênio ao invés de estimulá-lo! E quantos talentos são esterilizados pelas polêmicas da imprensa, pelos de­ bates parlamentares, pela vã esgrima dos Congressos! Tudo que se pode afirmar – e que confirma o que já foi dito – é que a ordem histórica de preponderância sucessiva das três formas de luta é precisamente a de sua aptidão a estimular a inventividade: com efeito, passa-se de uma era em que a guerra é preponderante a uma fase em que a concorrência predomina, e enfim a discussão. Além disso, numa sociedade que se civiliza, a troca se desenvolve mais rapidamente do que a concorrência, a conversação se desenvolve mais rapidamente do que a discussão, e o internacionalismo, mais rapidamente do que o militarismo. (Tarde 2011:78-9)

GRAUS de ADAPTAÇÃO (a si e aos outros)

Um agregado qualquer é um composto de seres adaptados entre si, seja uns com os outros, seja num conjunto subordinado a uma função comum. Agregado significa adaptat. Mas, além disso, diversos agregados que possuem relações entre si podem ser coadaptados, constituindo um adaptat de um grau superior. Seria possível distinguir, desse modo, uma infinidade de graus. Para simplificar, façamos uma distinção entre apenas dois graus de adaptação. A adaptação de primeiro grau é aquela que ocorre entre os elementos do sistema considerado; a adaptação de segundo grau é aquela que os une aos sistemas que os cercam, àquilo que podemos chamar, muito vagamente, de seu “meio”. O ajustamento a si mesmo difere muito, em toda ordem de fatos, do ajustamento a outrem, tal como a repetição de si (hábito) difere da repetição de outrem (hereditariedade e imitação), tal como a oposição a si mesmo (hesitação, dúvida) difere da oposição a outrem (luta, concorrência). Muitas vezes esses dois tipos de adaptação, em certa medida, se excluem mutuamente; é o caso das constituições políticas, onde se observa com bastante frequência que as mais coerentes, as mais logicamente deduzidas (apresentando portanto o mais alto grau de adaptação de primeiro grau) são as menos adaptadas às exigências de seu meio tradicional e costumeiro, e que, reciprocamente, as mais práticas são as menos lógicas. A mesma observação aplica-se às gramáticas de tantas línguas, às religiões, às belas-artes, etc.: a única gramática perfeita, com regras sem nenhuma exceção, é a do… volapuque. Ela também é aplicável aos organismos: há entre eles alguns que são perfeitos, mas que não são viáveis, e que se tornariam mais viáveis se fossem menos perfeitos. A perfeição de sua acomodação pode atrapalhar sua flexibilidade. (Tarde 2011:85-6)

FINALISMO INDUTIVO

Os partidários das causas finais fizeram tudo o que podiam para desacreditar a ideia de finalidade. Não é menos certo, no entanto, que os primeiros balbucios da ciência datam do momento em que essa noção foi introduzida, mesmo que de forma mística e bem pouco racional, na concepção do mundo. Diante da visão do céu estrelado, com que sonhou a ciência primitiva? Com uma adaptação imensa, única, quimérica, nascida da ilusão que aprendemos a chamar de geocêntrica, segundo a qual todas as estrelas existem para a Terra; a Terra, e sobre ela uma cidade ou um burgo seriam o único foco de interesse do firmamento, perpetuamente inquieto acerca do destino desses seres efêmeros que nós somos. A astrologia foi o desenvolvimento lógico dessa grandiosa e imaginária adaptação do céu à Terra e ao homem. A verdadeira astronomia não somente fez desaparecer essa absurda harmonia, mas também quebrou a unidade da harmonia celeste ao dividi-la em várias harmonias parciais, tão numerosas quantos os próprios sistemas solares, coerentes neles mesmos e simetricamente coordenados, porém ligados entre si por liames muito vagos e duvidosos, agrupados em nebulosas informes, em constelações esparsas de resplandecente desordem. Desde sempre apaixonada pela ordem, a razão humana logo teve de renunciar à sua busca pelas marcas mais evidentes de uma coordenação divina na totalidade do mundo – o Cosmos, o mais alto objeto de sua admiração. Ela teve de descer ao sistema solar para encontrá-las, e quanto mais ela conhecia deste pequeno mundo, mais encontrava nos detalhes, e não no conjunto desse belo agrupamento de massas, os motivos para extasiar-se. Mais do que as relações entre os próprios planetas, era a relação de cada um deles com seus satélites, e mais ainda, era a superfície de cada um desses globos, sua formação geológica, seu regime de águas, que revelavam um acordo perfeito e surpreendente. Doravante, já não é mais em direção à imensa abóbada celeste que a alma religiosa deve voltar-se para adorar a sabedoria profunda que move este mundo; agora, é para o cadinho do químico que ela deverá olhar se quiser escrutar o mistério das harmonias físicas mais precisas e maravilhosas, ainda mais admiráveis do que a mixórdia estrelada: as combinações químicas. Se, por meio do uso de um microscópio suficientemente forte, pudéssemos perceber o interior de uma molécula, ficaríamos muito mais fascinados pela mescla prodigiosa de movimentos elípticos e circulares que provavelmente a constituem do que com o jogo, no fim das contas bastante simples, dos grandes piões celestes! […] Se passarmos do mundo físico ao mundo da vida, também constataremos que o primeiro procedimento da razão foi conceber a criação orgânica inteira, vegetal e animal, como uma única e grandiosa adaptação aos fins da humanidade, destinada à sua nutrição, diversão, proteção, e também para avisá-la sobre perigos ocultos. As práticas divinatórias e o totemismo, difundidos desde as origens entre todos os povos, têm o mesmo fundamento. E os progressos do saber podem muito bem ter dissipado essa ilusão antropocêntrica, mas algo dela permaneceu no erro científico que reinou durante tanto tempo entre os filósofos naturalistas: o de representar a série paleontológica como uma ascensão em linha reta até o homem, e o de encarar cada espécie viva ou extinta como uma nota num grande concerto chamado de Plano divino da natureza, edifício ideal e regular cujo apogeu era o homem. Penosamente, à força dos desmentidos acumulados pela observação, ele precisou desprender-se de uma ideia que lhe era tão cara, reconhecendo que não é nas grandes linhas da evolução dos seres (tão ramificadas e tortuosas), e nem mesmo nos grandes agrupamentos de espécies diferentes em faunas e floras regionais (apesar da notável adaptação revelada nos casos de comensalismo ou em determinadas relações entre insetos e flores) que a natureza demonstra no mais alto grau sua maravilhosa potência de harmonia, mas sim nos detalhes de cada organismo. A meu ver, os partidários das causas finais comprometeram a ideia de finalidade ao empregá-la de maneira abusiva e errônea, mas não excessiva; ao contrário, eu poderia criticá-los por terem feito dessa ideia, com seus hábitos mentais unificadores, um uso demasiadamente restrito. Não existe um fim na natureza, um fim em relação ao qual todo o resto seria um meio; o que existe é uma multidão infinita de fins que tentam servir-se uns dos outros. Cada organismo, e cada célula de cada organismo, e talvez cada elemento celular dentro de cada célula, possui sua própria pequena providência particular. Assim, tal como antes, também aqui somos levados a pensar que a força harmonizadora – ao menos aquela com a qual a ciência tem o direito de ocupar-se, sem negar a possibilidade de que alguma outra exista – não é imensa e única, exterior e superior, mas infinitamente multiplicada, infinitesimal e interna. A bem dizer, a fonte de todas as harmonias vitais (às quais temos um acesso cada vez mais restrito à medida que nos afastamos desse ponto de partida para abranger um campo mais vasto) é o óvulo fecundado, interseção viva de linhagens que se encontraram ali, num cruzamento às vezes feliz, início de novas aptidões que irão, por sua vez, se difundir e propagar, graças à seleção dos mais aptos ou à eliminação dos menos aptos. (Tarde 2011:86-9)

A ADAPTAÇÃO SOCIAL ELEMENTAR é INTRA-CEREBRAL

Diremos agora que a adaptação social elementar é, no fundo, a que existe entre dois homens, um dos quais responde, com palavras ou ações, à questão proposta pelo outro, plenamente verbalizada ou tácita? Pois a satisfação de uma necessidade, assim como a solução de um problema, é uma resposta a uma questão. Diremos então que essa harmonia elementar consiste na relação entre dois homens, na qual um deles ensina e o outro aprende, um ordena e o outro obedece, um produz e o outro consome, na qual um é ator, poeta, artista, e o outro é espectador, leitor, amador? Ou diremos que eles se reuniram e fizeram uma obra em colaboração? Sim, é isso que diremos, pois embora nessa relação entre dois homens esteja implicada uma relação entre modelo e cópia, trata-se de algo bem diferente. […] A meu ver, no entanto, é preciso levar a análise ainda mais longe e, como já indiquei, buscar a adaptação social elementar no próprio cérebro, no gênio individual do inventor. A invenção que está destinada a ser imitada – pois aquela que permanece encerrada no espírito de seu autor não é socialmente relevante – é uma harmonia de ideias que é a mãe de todas as harmonias entre os homens. Para que exista uma troca entre produtor e consumidor, e para que, em primeiro lugar, exista um dom para o consumidor, o dom da coisa produzida (pois a troca é a dádiva tornada mútua, e como tal, vem depois da dádiva unilateral), é preciso que o produtor tenha inicialmente duas ideias: a da necessidade do consumidor ou donatário, e a de um meio apto a satisfazê-la. A adaptação exterior que chamamos de dádiva, e em seguida de troca, não teria sido possível sem essa adaptação interior de duas ideias. Do mesmo modo, a divisão de trabalho entre vários homens que executam as diversas tarefas de uma mesma operação, anteriormente executada por um único homem, não teria sido possível se ele não tivesse a ideia de conceber essas diversas tarefas como partes de um mesmo todo, como meios para um mesmo fim. No fundo de qualquer associação entre homens, existe originariamente, repito, uma associação entre as ideias de um mesmo homem. (Tarde 2011:92-3)

RELAÇÃO ENTRE PROGRESSOS (em extensão e em compreendão)

É desse progresso intrínseco que queremos falar, ou seja, da tendência de uma invenção, de uma adaptação social dada, a se complicar e intensificar ao adaptar-se a outra invenção, a outra adaptação, engendrando desse modo uma nova adaptação que, por meio de outros encontros e outras alianças lógicas do mesmo gênero, conduzirá a uma síntese mais alta, e assim por diante. Esses dois progressos – o progresso de uma invenção em extensão por meio de sua propagação imitativa, e seu progresso em compreensão, de algum modo, por meio de uma série de alianças lógicas – são certamente muito distintos, porém longe de serem inversamente proporcionais (apesar da oposição habitual, concernente a outros aspectos, entre a extensão e a compreensão das ideias), eles marcham paralelamente e são inseparáveis. A cada aliança cerebral de duas invenções em uma terceira —quando, por exemplo, a ideia da roda e a ideia da domesticação do cavalo, depois de se propagarem independentemente (talvez durante séculos), se fundiram e harmonizaram na ideia de carro – foi preciso, necessariamente, que a imitação operasse para aproximá-las em um mesmo cérebro, tal como foi preciso, para o surgimento de cada uma delas, que seus elementos fossem trazidos para o espírito de seus autores por meio de diversas irradiações de exemplos. Melhor ainda, a cada síntese de novas invenções, geralmente é preciso uma irradiação imitativa mais vasta que as precedentes. Existe um entrelaçamento contínuo entre essas duas progressões, a progressão imitativa, uniformizadora, e a progressão inventiva, sistematizadora. Elas estão ligadas entre si por um vínculo que, sem dúvida, nada tem de rigoroso (pois, por exemplo, uma série de árduos teoremas pôde desenrolar-se no cérebro de um Arquimedes ou de um Newton sem nenhuma contribuição de elementos trazidos por sábios estrangeiros no decorrer de cada uma dessas descobertas), mas esse vínculo é suficientemente costumeiro para nos fazer acreditar que constataremos um crescimento da extensão do campo social e da intensidade das comunicações sociais, e uma ampliação e aprofundamento das nacionalidades (senão dos Estados), sempre que crescerem a riqueza das línguas, a beleza arquitetônica das teologias, a coesão das ciências, a complexidade e a codificação das leis, a organização espontânea ou a regulamentação dos trabalhos industriais, o regime financeiro, a coordenação e a complicação administrativas, os refinamentos e a variedade da literatura e das belas-artes. (Tarde 2011:95-6)

ACOPLAMENTOS LÓGICOS

[Q]uer se trate de uma síntese de ações, de uma invenção científica ou industrial, religiosa ou estética (em uma palavra, teórica ou prática), podemos chamar de “acoplamento lógico” o procedimento elementar que a formou. Com efeito, qualquer que seja o número de ideias ou atos sintetizados numa teoria ou máquina, jamais existe uma combinação de mais do que dois elementos de cada vez, adaptados entre si no cérebro do inventor ou de cada um dos inventores que colaboraram sucessivamente para sua formação. Em sua Sémantique, Michel Bréal fez uma observação muito perspicaz a respeito da linguagem que sustenta esta minha observação geral: “qualquer que seja o comprimento”, diz ele, “de uma palavra composta, ela jamais compreende mais do que dois termos. Essa regra não é arbitrária: ela decorre da natureza de nosso espírito que associa suas ideias em pares.” Em outra passagem relativa às figuras esquemáticas pelas quais James Darmesteter tentou tornar visível a evolução dos sentidos das palavras de acordo com diferentes vias, o mesmo autor escreve: “é preciso lembrar que essas figuras complicadas só têm valor para o linguista: aquele que inventa o novo sentido (de uma palavra) esquece momentaneamente todos os sentidos anteriores, salvo um, de maneira que as ideias sempre se associam de duas em duas.” E isso sempre acontece, tal como nas oposições entre ideias, como já vimos. Seria fácil, porém tedioso, mostrar a generalidade desse processo; bastaria flagrar sucessivamente cada descoberta ou aperfeiçoamento no momento em que ela é adicionada à descoberta anterior, seja na esfera científica, jurídica, econômica, política, artística ou moral. Em vez disso, é preferível indicar por que é assim, e como isso se torna possível e necessário. […] Por um lado, isso se deve essencialmente ao fato de que a marcha do espirito, seu funcionamento elementar, consiste em passar de uma ideia a outra ligando as duas por um juízo ou por uma volição: por um juízo que mostra a ideia do atributo implicada na ideia do sujeito, ou por um ato de vontade que encara a ideia do meio como estando implicada na ideia da finalidade. Por outro lado, se o espírito passa de um juízo a outro juízo mais complexo, e de uma volição a outra, mais compreensiva, é porque à força de repetir-se mentalmente em virtude dessa dupla forma de imitação de si mesmo, que chamamos de memória e hábito, um juízo termina por enrodilhar-se numa noção, fusão de seus dois termos doravante soldados e indistintos; e uma volição, um desígnio, acaba transformando-se num reflexo cada vez menos consciente. Por causa dessa transformação inevitável – que ocorre em larga escala, socialmente, sob os nomes respeitáveis de tradição e costume – nossos antigos juízos tornam-se aptos a integrar, agora como noções, um novo juízo; e nossos antigos desígnios tornam-se aptos a integrar um novo desígnio. Da mais baixa à mais alta operação de nosso entendimento e de nossa vontade, esse procedimento é o mesmo; e não existe descoberta teórica que seja algo além da junção judiciária de um atributo, ou seja, de antigos juízos, a um novo sujeito, assim como não há descoberta prática que seja algo além da junção voluntária de um meio, ou seja, de um antigo fim, anteriormente desejado por si mesmo, a um novo fim. Por meio dessa alternância, ao mesmo tempo tão simples e tão fecunda, de mudanças inversas que se sucedem indefinidamente, o juízo e a finalidade de ontem se tornam a noção simples e o simples meio de hoje, que suscitarão o juízo ou a finalidade de amanhã, e assim por diante; e foi de acordo com esse ritmo social, e também psicológico, que todos os grandes edifícios de descobertas e invenções que despertam nossa admiração foram construídos: nossas línguas, nossas religiões, nossas ciências, nossos códigos, nossas administrações, e decerto nossa organização militar, nossas indústrias, nossas artes. […] Quando consideramos uma dessas grandes coisas sociais – uma gramática, um código, uma teologia – o espírito individual parece tão diminuto ao pé desses monumentos, que a ideia de enxergar nele o único construtor dessas gigantescas catedrais parece ridícula aos olhos de alguns sociólogos; e como estes não percebem que com isso renunciam à possibilidade de explicá-las, pode-se perfeitamente desculpá-los por serem levados a dizer que tais obras são eminentemente impessoais. Apenas mais um passo levaria a postular (como meu ilustre adversário Durkheim) que, longe de serem funções do indivíduo, elas são seus fatores, existindo independentemente das pessoas humanas e governando-as despoticamente ao projetar sobre elas sua sombra opressiva. Mas como essas realidades sociais – pois se eu combato a ideia do organismo social, estou longe de contradizer a de um certo realismo social, que precisaria ser definido – como, repito, essas realidades sociais foram produzidas? Eu admito de bom grado que, uma vez que foram produzidas, elas se impõem ao indivíduo, às vezes de maneira coercitiva, o que é raro, e mais frequentemente por persuasão, por sugestão, pelo prazer singular de que gozamos, desde o berço, ao nos impregnar com os exemplos dos mil modelos existentes em nosso ambiente, como uma criança ao sugar o leite de sua mãe. Eu admito isso, mas como esses monumentos grandiosos aos quais me refiro foram construídos, e por quem, a não ser por homens e esforços humanos? (Tarde 2011:98-100)

SÍNTESE

É hora de terminar, e para rematar, façamos um resumo das principais conclusões às quais fomos conduzidos e busquemos sua significação de conjunto. Vimos que toda ciência vive de similitudes, de contrastes ou de simetrias, e de harmonias – ou seja, de repetições, oposições e adaptações – e indagamos qual é a lei de cada um desses três termos, bem como a relação de cada um deles com os demais. Vimos que o espírito humano, apesar de sua propensão natural – que a princípio parece tão legítima – a ater-se aos maiores fenômenos, aos mais imponentes, aos mais prestigiosos, para explicar os menos visíveis, foi irresistivelmente conduzido a encontrar o princípio das coisas, em toda ordem de fatos, nos fatos mais recônditos, cuja fonte, a bem dizer, continua insondável para ele. Essa constatação deveria causar-lhe uma grande surpresa, mas não foi assim, pois o hábito da observação científica nos familiarizou com essa reversão da ordem sonhada pelo pensamento nascente. Assim, a lei da repetição, quer se trate da repetição ondulatória e gravitacional do mundo físico, ou da repetição hereditária e habitual do mundo vivo, ou da repetição imitativa do mundo social, é a tendência de passar por via de amplificação progressiva de um infinitesimal relativo a um infinito relativo. A lei de oposição não é diferente: ela consiste em uma tendência a amplificar-se numa esfera sempre crescente a partir de um ponto vital. Socialmente, esse ponto é o cérebro de um indivíduo, a célula desse cérebro onde se produz, pela interferência de ondas imitativas vindas de fora, uma contradição entre duas crenças ou dois desejos. Essa é a oposição social elementar, princípio inicial das mais sangrentas guerras, assim como a repetição social elementar é o fato individual do primeiro imitador, ponto de partida de um imenso contágio de moda. A lei de adaptação, por fim, assemelha-se às anteriores: a adaptação social elementar é a invenção individual a ser imitada, ou seja, a feliz interferência entre duas imitações, inicialmente num único espírito; e a tendência dessa harmonia – que na origem é toda interior – é não somente exteriorizar-se ao se difundir, mas ainda acoplar-se logicamente, graças a essa difusão imitativa, com alguma outra invenção, e assim por diante, até que, por meio de complicações e harmonizações sucessivas de harmonias, apareçam essas grandes obras coletivas do espírito humano: uma gramática, uma teologia, uma enciclopédia, um corpo de direito, uma organização natural ou artificial do trabalho, uma estética, uma moral. […] Assim, em resumo, é certo que tudo vem do infinitesimal, e acrescentemos, é provável que tudo a ele retorne. Ele é o alfa e o ômega. Tudo o que constitui o universo visível, acessível às nossas observações, tudo isso provém, como sabemos, do invisível e do impenetrável, de um nada aparente do qual sai, de maneira inesgotável, toda a realidade. Se nós refletíssemos sobre esse estranho fenômeno, ficaríamos admirados com a potência do preconceito, ao mesmo tempo popular e científico, que faz com que todo mundo – tanto um Spencer como um desavisado – olhe para o infinitesimal como algo insignificante, ou seja, homogêneo, neutro, sem nada de característico ou espiritual. Ilusão inextirpável! E ainda mais inexplicável na medida em que também nós, como todos os seres, estamos destinados a voltar em breve, pela morte, a esse infinitesimal de onde saímos, esse infinitesimal tão desprezado, que poderia muito bem ser, no fundo – quem sabe? – todo o verdadeiro além, o único refúgio póstumo, procurado em vão nos espaços infinitos… Seja como for, que razão teríamos para julgar a priori, sem conhecer o mundo elementar, que apenas o mundo visível, o mundo espaçoso e volumoso, é o teatro do pensamento, a sede de fenômenos variados e viventes? Como podemos supor tal coisa, quando a cada instante vemos emergir um ser individual, com sua fisionomia própria e radiante, do fundo de um óvulo fecundado, do fundo de uma parte desse óvulo, de uma parte que quanto mais a procuramos, mais vai se circunscrevendo e esvanecendo, até não sei que ponto inimaginável? Esse ponto, fonte de tamanha diferença, como julgá-lo indiferenciado? Eu sei bem qual é a objeção que me aguarda: a pretensa lei da instabilidade do homogêneo. Mas ela é falsa, ela é arbitrária, ela foi imaginada expressamente para conciliar um preconceito (o de acreditar que aquilo que é indistinto aos nossos olhos é indiferenciado em si mesmo) com a evidência das diversidades fenomenais, das exuberantes variações viventes, psicológicas e sociais. A verdade é que apenas o heterogêneo é instável, e que o homogêneo é essencialmente estável. A estabilidade das coisas está em razão direta de sua homogeneidade. A única coisa na Natureza que é (ou parece ser) perfeitamente homogênea é o Espaço geométrico, que não mudou desde Euclides. Tem-se a intenção de dizer simplesmente que o menor germe de heterogeneidade, ao ser introduzido num agregado relativamente homogêneo, como o fermento na massa, provocará nele uma diferenciação crescente? Isso eu contesto: num país ortodoxo, de unanimidade religiosa ou política, a introdução de uma heresia ou de uma dissidência tem muito mais chances de ser rapidamente reabsorvida ou expulsa do que de crescer às expensas da Igreja ou da política reinantes. Eu não nego a lei de diferenciação em suas aplicações orgânicas ou sociais, mas ela estará sendo muito mal compreendida caso impeça a visão da lei de uniformização crescente que se mistura e se entrelaça com ela. Na realidade, a diferenciação da qual se quer falar é antes a adaptação da qual falamos; por exemplo, a divisão do trabalho em nossas sociedades não passa da associação ou coadaptação progressiva de trabalhos diversos por meio de invenções sucessivas. Circunscrita em seus primórdios às tarefas caseiras, ela vai se repetindo e ampliando sem cessar, estendendo-se primeiramente à cidade, na qual as diversas tarefas, outrora semelhantes umas às outras, porém diferenciadas interiormente, tornam-se diferentes umas das outras, mas separadamente mais homogêneas; depois torna-se nacional, e em seguida internacional. Assim, não é verdade que a diferença vá aumentando, pois se a cada instante aparecem novidades e outras diferenças, também desaparecem antigas diferenças; e levando em conta essa consideração, não teremos nenhuma razão para pensar que a soma das diferenças, se é que é possível somar coisas que não têm uma medida comum, tenha aumentado no universo. Algo muito mais importante do que um simples aumento de diferença acontece sem cessar: a diferenciação da própria diferença. A própria mudança vai mudando, e num sentido determinado, que nos encaminha de uma era de diferenças cruas e justapostas, como de cores berrantes que não combinam, para uma era de diferenças harmoniosamente nuançadas. Seja lá o que se possa pensar dessa maneira de ver, é inconcebível que, segundo a hipótese de uma substância homogênea eternamente submetida à disciplina niveladora e coordenadora das leis científicas, tivesse jamais podido existir um universo como o nosso, deslumbrante em seu desmedido luxo de surpresas e caprichos. O que poderia nascer a partir do perfeitamente semelhante e perfeitamente regra­ do, a não ser um mundo eterna e imensamente tedioso? Do mesmo modo, a essa concepção corrente do universo como formado por uma poeira infinita de elementos, todos semelhantes no fundo e dos quais a diversidade teria emergido sabe-se lá como, eu me permito opor minha concepção particular que o representa como a realização de uma multidão de virtualidades elementares, cada qual caracterizada e ambiciosa, cada qual trazendo em si seu universo distinto, seu universo próprio e de sonho. Pois o número de projetos abortados por ele é infinitamente maior do que o número de projetos desenvolvidos; e é entre os sonhos concorrentes, entre os programas rivais, muito mais do que entre os seres, que acontece a grande batalha pela vida que elimina os menos adaptados. Dessa forma, o subsolo misterioso do mundo fenomenal seria tão rico em diversidades – embora sejam outras diversidades – quanto o patamar das realidades superficiais. (Tarde 2011:109-13)

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