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O problema do físico sequestrado por estudantes de ciência política (Walker, Halliday & Resnick 2014)

O problema do físico sequestrado por estudantes de ciência política (Walker, Halliday & Resnick 2014)

Eis o problema:

You are kidnapped by political-science majors (who are upset because you told them political science is not a real science). Although blindfolded, you can tell the speed of their car (by the whine of the engine), the time of travel (by mentally counting off seconds), and the direction of travel (by turns along the rectangular street system). From these clues, you know that you are taken along the following course: 50 km/h for 2.0 min, turn 90° to the right, 20 km/h for 4.0 min, turn 90° to the right, 20 km/h for 60 s, turn 90° to the left, 50 km/h for 60 s, turn 90° to the right, 20 km/h for 2.0 min, turn 90° to the left, 50 km/h for 30 s. At that point, (a) how far are you from your starting point, and (b) in what direction relative to your initial direction of travel are you? (Walker; Halliday; Resnick 2014:89)

Trata-se to problema 85, do capítulo 4 (“Motion in two and three dimensions”), da décima edição de Fundamentals of physics, clássico de David Halliday e Robert Resnick, publicado originalmente em 1960, e desde 1990 revisado por Jearl Walker (a referência bibliográfica é: WALKER, Jearl; HALLIDAY, David; RESNICK, Robert. 2014. Fundamentals of Physics. 10th Edition. USA: Wiley).

Tecnicamente, o problema se resume ao seguinte trecho: “você está se deslocando de acordo com a seguinte rota: 50 km/h por 2.0 min, vira 90° para a direita, 20 km/h por 4.0 min, vira 90° para a direita, 20 km/h por 60 s, vira 90° para a esquerda, 50 km/h por 60 s, vira 90° para a direita, 20 km/h por 2.0 min, vira 90° para a esquerda, 50 km/h por 30 s. Neste ponto, (a) qual é a sua distância do ponto de partida, e (b) em que direção você está, relativamente à sua direção inicial do deslocamento?”

A solução, curta e objetiva, confirma: (a) a distância percorrida foi de “2,7 km”; e (b) a mudança de direção durante o trajeto foi de “76° no sentido horário” (Walker; Halliday; Resnick 2014:AN-2).

Eis então a minha questão: porque toda a introdução, sobre “estudantes de ciência política” que supostamente “sequestram” o personagem com o qual o enunciado espera que o leitor-estudante-de-física-fazendo-o-exercício-85 se identifique, por este lhes ter ofendido, dizendo que “ciência política não é uma verdadeira ciência”?

Como complemento motivacional, criador de empatia entre o leitor-estudante-de-física-fazendo-o-exercício-85 e o problema físico-matemático, não bastaria a bela passagem sobre o fato de que “[m]esmo vendado, você consegue saber a velocidade do carro (pelo gemido [whine] do motor), a duração do trajeto (contando mentalmente os segundos) e a direção do deslocamento (pelas curvas no sistema rodoviário retangular)”? Não consigo imaginar nada mais próximo do alívio que deveria provocar, no estudante-de-física-em-geral, da frase “ignorando o atrito”. Ou seja: ignorando que não existe nenhuma relação direta entre o som do motor e a velocidade do carro, que só algum tipo de maníaco contaria segundos com alguma acuidade nestas condições, e que o sistema rodoviário nunca é retangular (mesmo quando parece ser à primeira vista), você leitor-estudante-de-física-fazendo-o-exercício-85 poderá reduzir o problema a algo calculável matematicamente. Isso bastaria para tornar do problema 85 instigante a se resolver.

Mas infelizmente, o enunciado achou oportuno introduzir personagens caricaturais e improváveis, que não deveriam ser exemplos pra ninguém. O personagem que o enunciado do problema parece querer identificar com o leitor-estudante-de-física-fazendo-o-exercício-85, por exemplo, é um provocador infantil, além de ignorante em filosofia da ciência. Os estudantes de (pseudo)ciência política contra os quais o leitor-estudante-de-física-fazendo-o-exercício-85 é instado a se mobilizar, por outro lado, são igualmente ignorantes em filosofia da ciência, além de infantis. A única certeza, enunciada pela resposta à pergunta (b), é que estamos diante de uma guinada infantil à direita.

A existência deste enunciado em um dos principais manuais de física do mundo, junto com aquilo que ele representa acerca da relação entre humanidades e ciências exatas e naturais, deveria ser discutido e elaborado por um coletivo interessado num progresso tecnocientífico e humano.