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Um Lévi-Strauss amoderno

Um Lévi-Strauss amoderno

[O trecho abaixo foi extraído do início do nono e último capítulo (“Histoire et dialectique”) de La pensée sauvage, de Claude Lévi-Strauss (1962). O trecho aproveita a única tradução brasileira da obra (Lévi-Strauss 2008), mas inclui importantes modificações motivadas pelo cotejo do original e da tradução britânica (Lévi-Strauss 1966). Essas modificações foram indicadas pelo uso de colchetes.]

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No vocabulário de Sartre [SARTRE, Jean-Paul. 1960. Critique de la raison dialectique, Paris: Gallimard.], definimo-nos, então, como materialista transcendental e como esteta. Materialista transcendental […], pois que, para nós, a razão dialética não é outra coisa que a razão analítica e aquilo sobre o que se fundaria a originalidade absoluta de uma ordem humana; mas alguma coisa a mais na razão analítica: sua condição requerida para que ouse empreender a resolução do humano [no] não-humano. Esteta, pois Sartre aplica esse termo a quem pretende estudar os homens como se fossem formigas […][.] Mas, além de essa atitude parecer-nos a de todo homem de ciência do momento, que é agnóstico, não é absolutamente comprometedora, pois as formigas, com seus [cogumelos artificiais], sua vida social e suas mensagens químicas, já oferecem uma resistência suficientemente coriácea aos empreendimentos da razão analítica… Aceitamos, pois, o qualificativo de esteta, por acreditar que o objetivo último das ciências humanas não é constituir o homem[,] mas dissolvê-lo. O valor eminente da etnologia é o de corresponder à primeira etapa de um processo que comporta outras: para além da diversidade empírica das sociedades humanas, a análise etnográfica pretende atingir invariantes, que o presente trabalho mostra estarem situadas, às vezes, nos mais imprevistos pontos. Rousseau [ROUSSEAU, Jean-Jacques. 1783. Essai sur l’origine des langues. Œuvres posthumes. Tome II, Cap.VIII, Londres.] o pressentira com sua habitual clarividência: “Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar para perto de si; mas, para estudar o homem, é preciso aprender a dirigir a vista para longe; é preciso primeiro observar as diferenças para descobrir as propriedades”. Não obstante, não seria bastante reabsorver humanidades particulares em uma humanidade geral; esta primeira empresa insinua outras, que Rousseau não teria admitido de bom grado e que cabem às ciências exatas e naturais: reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas [Nota de rodapé 80: A oposição entre natureza e cultura, sobre a qual insistimos outrora [LÉVI-STRAUSS, Claude. 1949. Les structures élémentaires de la parenté, Paris: PUF, Caps. I e II.], parece-nos, hoje, oferecer um valor sobretudo metodológico.].
Mas, a despeito [do contorno] voluntariamente brutal [dado à] nossa tese, não perdemos de vista que o verbo “dissolver” não implica de maneira nenhuma (e mesmo exclui) a destruição das partes constitutivas do corpo submetidas à ação de um outro corpo. A solução de um sólido num líquido modifica o arranjo das moléculas do primeiro; ela [oferece] também, muitas vezes, um meio eficaz de colocá-las de reserva[,] para recuperá-las segundo a necessidade e para melhor estudar suas propriedades. As reduções que enfocamos só serão, portanto, legítimas e mesmo possíveis, sob duas condições, das quais a primeira é não empobrecer os fenômenos submetidos à redução[,] e ter certeza de que se reuniu previamente em torno de cada um tudo o que contribui para sua riqueza e originalidade distintivas[:] pois de nada serviria empunhar um martelo[,] se fosse para bater ao lado do prego.
Em segundo lugar, deve-se estar preparado para ver cada redução perturbar por completo a idéia preconcebida que se possa fazer do nível, qualquer que seja, que se tente alcançar. A idéia de uma humanidade geral, para a qual a redução etnográfica conduz, não terá mais nenhuma relação com aquela que antes se tinha. E, no dia em que se chegar a compreender a vida como uma função da matéria inerte, será para descobrir que esta possui propriedades bem diferentes das que lhe eram atribuídas anteriormente. Portanto, não se poderiam classificar os níveis de redução em superiores e inferiores, pois [seria necessário, ao contrário, se atentar ao fato de que, pelo efeito da redução, o nível considerado superior comunica retroativamente algo de sua riqueza ao nível inferior ao qual ele foi assimilado]. A explicação científica não consiste na passagem da complexidade à simplicidade mas na substituição, [por uma complexidade mais inteligível, de uma outra que o era menos].

LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris: Plon, pp.326-8.
LÉVI-STRAUSS, Claude. 2008. O pensamento selvagem. (Trad.: Tânia Pellegrini) Campinas: Papirus, pp.273-5.
LÉVI-STRAUSS, Claude. 1966. The savage mind. London: Weidenfeld and Nicolson, pp.246-8.

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