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Redes que a razão desconhece (Latour 2004)

Redes que a razão desconhece (Latour 2004)

LATOUR, Bruno. 2004. Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções. In: André Parente (org.). Tramas da rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. (Trad. Marcela Mortara) Porto Alegre: Sulina, pp.39-63.

Aqui, não nos encontramos nem numa biblioteca nem numa coleção, mas aquém delas, na costa da Nova-Guiné. O naturalista está em sua terra, mas longe, enviado pelo rei para trazer desenhos, espécimes naturalizados, mudas, herbários, relatos e, quem sabe, indígenas. Tendo partido de um centro europeu para uma periferia tropical, a expedição que ele serve traça, através do espaço-tempo, uma relação muito particular que vai permitir ao centro acumular conhecimentos sobre um lugar que até então ele não podia representar. Nesta gravura muito posada, o naturalista se desenhou a si próprio em plena atividade de transformação de um lugar em outro, registrando a transição entre o mundo das matérias locais e o dos signos móveis e transportáveis para qualquer lugar. Notemos, aliás, que ele se retrata num quase-laboratório, um lugar protegido pela folha de bananeira que o abriga do sol e pelos frascos de espécimes conservados no álcool, Notemos também que o mundo indígena deve fazer-se representar a fim de ser colhido pelo movimento da informação. A escrava de formas generosas exibe o papagaio e permite ao desenhista detectar mais rapidamente os traços característicos do mesmo. O desenho produzido por esse quase-laboratório em breve circulará em todas as coleções reais; quanto aos espécimes, empalhados ou em frascos de álcool, irão enriquecer os gabinetes de curiosidades de toda a Europa. (Latour 2004:41)

INFORMAÇÃO:

A informação não é um signo, e sim uma relação estabelecida entre dois lugares, o primeiro, que se torna uma periferia, e o segundo, que se torna um centro, sob a condição de que entre os dois circule um veículo que denominamos muitas vezes forma, mas que, para insistir em seu aspecto material, eu chamo de inscrição. (Latour 2004:40)

Verifica-se que a informação não é uma “forma” no sentido platônico do termo, e sim uma relação muito prática e muito material entre dois lugares, o primeiro dos quais negocia o que deve retirar do segundo, a fim de mantê-lo sob sua vista e agir à distância sobre ele. (Latour 2004:42)

Ora, a informação permite justamente limitar-se à forma, sem ter o embaraço da matéria. (Latour 2004:41)

A informação não é inicialmente um signo, e sim o “carregar”, em inscrições cada vez mais móveis e cada vez mais fiéis, de um maior número de matérias. (Latour 23004:42)

A produção de informações permite, portanto, resolver de modo prático, por operações de seleção, extração, redução, a contradição entre a presença e a ausência num lugar. Impossível compreendê-la sem se interessar pelas instituições que permitem o estabelecimento dessas relações de dominação, e sem os veículos materiais que permitem o transporte e o carregamento. (Latour 2004:42)



REDUÇÃO e AMPLIFICAÇÃO

Reencontramos as aves empalhadas de há pouco, mas no meio de todos os seus congêneres, trazidos, do mundo inteiro, por naturalistas dispersos no espaço e no tempo. Em comparação com a situação inicial, em que cada ave vivia livremente em seu ecossistema, que perda considerável, que diminuição! Mas, em comparação com a situação inicial, em que cada ave voava invisível na confusão de uma noite tropical ou de um amanhecer polar, que ganho fantástico, que aumento. O ornitólogo pode então, tranquilamente, em local protegido, comparar os traços característicos de milhares de aves tornadas comparáveis pela imobilidade, pela pose, pelo empalhamento. O que vivia disperso em estados singulares do mundo se unifica, se universaliza, sob o olhar preciso do naturalista. Impossível, é claro, compreender este suplemento de precisão, de conhecimento, sem a intuição que abriga todas essas aves empalhadas, que as apresenta ao olhar dos visitantes, que a marca por um fino jogo de escrita e de etiquetas, que as classifica por um sistema retificável de prateleiras, de gavetas, de vitrines, que as preserva e as conserva borrifando-as com inseticidas. Aí também, tanto para a amplificação como para a redução, a informação exige uma competência, um trabalho tão material quanto o do empalhador. Talvez o naturalista não pense diferentemente do indígena que percorria sua ilha em busca de um papagaio, mas ele vive, com certeza, num outro ecossistema. A comparação de todas as aves do mundo sinoticamente visíveis e sincronicamente reunidas lhes dá uma enorme vantagem sobre quem só pode ter acesso a algumas aves vivas. A redução de cada ave se paga com uma formidável amplificação de todas as aves do mundo. (Latour 2004:44)

DA OPOSIÇÃO REALISTASxCONSTRUTIVISTAS para a CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

Questão clássica que a filosofia das ciências quis enquadrar por muito tempo, opondo os realistas de um lado e os construtivistas do outro, como se não se tratasse, ao contrário, de compreender a “construção da realidade” bem real dessa gente. (Latour 2004:45-6)





CARTOGRAFIA:

Inversão propriamente fantástica, pois aquele que seria dominado, na paisagem desenhada ao fundo, torna-se o dominante assim que entra em seu gabinete de trabalho e desdobra os mapas para rasurá-los. […] Prestemos atenção por um instante à inversão das relações de força entre aquele que viaja numa paisagem e aquele que percorre com o olhar o mapa recém-desenhado. (Latour 2004:46-7)

Quando Mercator utiliza pela primeira vez a palavra Atlas, para designar não mais o gigante que carrega o mundo em seus ombros, e sim o volume que permite segurar a terra entre as mãos, ele materializa a inversão das relações de força que a cartografia torna tão claramente visíveis – mas que se encontram em graus diferentes, em todas as disciplinas que entram sucessivamente na “via direta de uma ciência”. Resumo notável da história das ciências, este frontispício em que Atlas não tem mais nada a fazer, senão medir a bola que segura sem esforço nos joelhos. (Latour 2004:50)

Essas duas espécies de signos, mapas e placas, alinhados uns aos outros e mantidos ambos por grandes instituições […] nos permitem passar do mapa ao território, negociando com cautela a enorme mudança de nível que separa um pedaço de papel, que dominamos pelo olhar, de um lugar onde moramos e que nos cerca por todos os lados. (Latour 2004:60)

DIGITALIZAÇÃO e o PODER DA REDE

Hoje compreendemos melhor esta compatibilidade [de tipos de informações diferentes], pois todos utilizamos computadores que se tornam capazes de remexer, religar, combinar, traduzir desenhos, textos, fotografias, cálculos ainda agora fisicamente separados. A digitalização prolonga esta longa história dos centros de cálculo, oferecendo a cada inscrição o poder de todas as outras. Mas este poder não vem de sua entrada no universo dos signos, e sim de sua compatibilidade, de sua coerência ótica, de sua padronização com outras inscrições, cada uma das quais se encontra sempre lateralmente ligada ao mundo através de uma rede. (Latour 2004:49)


CENTRAL DE CÁLCULO e MAIS VALIA DE INFORMAÇÃO (ciência; móveis imutáveis; redes de transformações)

A partir do momento nem que uma inscrição aproveita as vantagens do inscrito, do calculado, do plano, do desdobrável, do acumulável, do que se pode examinar com o olhar, ela se torna comensurável com todas as outras, vindas de domínios da realidade até então completamente estranhos. A perda considerável de cada inscrição isolada, em relação com o que ela representa, se paga ao cêntuplo com a mais-valia de informações que lhe proporciona esta compatibilidade com todas as outras inscrições. (Latour 2004:48)

cada dado se liga, por um lado, a seu próprio mundo de fenômenos, e, por outro lado, a todos aqueles com os quais se torna compatível. (Latour 2004:50)

Não existe ciência, rígida ou flexível, quente ou fria, antiga ou recente que não dependa desta transformação prévia, e que não acabe por expor os fenômenos pelos quais ela se interessa numa superfície plana de alguns metros quadrados, em volta da qual se reúnem pesquisadores que apontam com os dedos os traços pertinentes, discutindo entre eles. O controle intelectual, o domínio erudito, não se exerce diretamente sobre os fenômenos – galáxias, vírus, economia, paisagens – mas sim sobre as inscrições que lhe servem de veículo, sob a condição de circular continuamente, e nos dois sentidos, através de redes de transformações – laboratórios, instrumentos, expedições, coleções. (Latour 2004:51)

Para compreender um centro de cálculo é preciso pois apreender o conjunto da rede de transformações que liga cada inscrição ao mundo, e que liga em seguida cada inscrição a todas as que se tornaram comensuráveis a ela pela gravura, o desenho, o relato, o cálculo ou, mais recentemente, pela digitalização. (Latour 2004:53)

Redes de transformações fazem chegar aos centros de cálculos, por uma série de deslocamentos – redução e amplificação – um número cada vez maior de inscrições. Essas inscrições circulam nos dois sentidos, único meio de assegurar a fidelidade, a confiabilidade, a verdade entre o representado e o representante. Como elas devem ao mesmo tempo permitir a mobilidade das relações e a imutabilidade do que elas transportam, eu as chamo de “móveis imutáveis” entre nós, para distingui-las bem dos signos. Com efeito, quando as seguimos, começamos a atravessar a distinção usual entre palavras e coisas, viajamos não apenas no mundo, mas também nas diferentes matérias da expressão. Uma vez nos centros, outro movimento se acrescenta ao primeiro, que permite a circulação de todas as inscrições capazes de trocar entre si algumas de suas propriedades. A coerência […] dos fenômenos relatados autoriza de fato essa capitalização, que parece sempre tão incompreensível quanto a do dinheiro. (Latour 2004:55)

O conjunto desta galáxia emaranhada – redes e centro – funciona como um verdadeiro laboratório, deslocando as propriedades dos fenômenos, redistribuindo o espaço-tempo, proporcionando aos “capitalizadores” uma vantagem considerável, uma vez que eles estão ao mesmo tempo afastados dos lugares, ligados aos fenômenos por uma série reversível de transformações, e aproveitam o suplemento de informações oferecido por toda e qualquer inscrição a todas as outras. (Latour 2004:56)

Com efeito, trata-se sempre, pela invenção [a tradução errou aqui ao colocar “inversão”] de instrumentos cada vez mais sutis, de conservar o máximo de formas e forças através do máximo de transformações, deformações, provas. Ah, deter-se num ponto e, por uma série de simples transformações, de simples deduções, recriar todos os outros, à vontade! (Latour 2004:57)

De fato, como na relatividade de Einstein, existe sim um observador privilegiado, aquele que, no centro de cálculo, pode capitalizar o conjunto dos desenhos, dos dados, dos levantamentos, dos mapas, das observações, enviados por todos os observadores despojados de qualquer privilégio, e pode também, por uma série de correções, de transformações, de reescritas, de conversões, torná-los todos compatíveis. […] A partir do momento que um observador, um instrumento, um investigador se torna muito específico, muito particular, muito idiossincrático, ele interrompe o deslocamento dos móveis imutáveis, acrescenta ruído à linha, enfraquece o centro de cálculo, impede o observador privilegiado de capitalizar, isto é, de conhecer. […] A perspectiva, a teoria da relatividade, a geometria são alguns dos veículos que asseguram às inscrições seja sua mobilidade, seja sua imutabilidade. Existem muitos outros, menos grandiosos, como o empalhamento, a imprensa, o modelo reduzido, a conservações no azoto líquido ou a perfuração para a extração de amostras. (Latour 2004:58)

A veracidade não vem da superposição de um enunciado e de um estado do mundo, mas procede antes da manutenção contínua das redes do centro e dos móveis imutáveis que aí circulam. […] Deve-se ouvi-la [à palavra “verdade”] antes como o ronronar de uma rede que se otimiza [[a tradução errou aqui ao colocar “gira”] e que se estende. (Latour 2004:59)

Se desejamos entender como chegamos, às vezes, a dizer a verdade, devemos substituir a antiga distinção entre a linguagem e o mundo por essa mistura de instituições, formas, matérias e inscrições. (Latour 2004:61)


OS SIGNOS e o MUNDO

Que tenham sido necessários vinte anos de duros trabalhos e de inverossímeis aventuras para obter este meridiano [de Quito], eis o que não se deve esquecer, sob pena de crer que o signo representa o mundo sem esforço e sem transformação, ou que ele existe à parte, num sistema autônomo [a tradução errou aqui ao colocar “astronômico”] que lhe serviria de referência. (Latour 2004:54-5)

O LOCUS do FENÔMENO é a REDE

Onde se encontram os fenômenos?, perguntar-se-á. “Fora, na extremidade das redes que os representam fielmente”, dirão uns. “Dentro, ficção regulada pela estrutura própria do universo dos signos”, dirão outros. […] Infelizmente [?], os fenômenos circulam através do conjunto, e é unicamente a sua circulação que permite verificá-los, assegurá-los, validá-los. (Latour 2004:56)

Como se vê, os fenômenos não se situam nem no exterior nem no interior das redes. Eles residem numa certa maneira de se deslocar que otimiza a manutenção das relações constantes, apesar do transporte e da diversidade dos observadores. (Latour 2004:58)

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