Ouro e prata em Deleuze e Guattari (1997 [1980])

Ainda do ponto de vista do agenciamento, há uma relação essencial entre as ferramentas e os signos. É que o modelo trabalho, que define a ferramenta, pertence ao aparelho de Estado. Com frequência se disse que o homem das sociedades primitivas não trabalhava propriamente, mesmo se suas atividades eram muito coercitivas e regradas; e tampouco o homem de guerra enquanto tal (os “trabalhos” de Hércules supõem a submissão a um rei). O elemento técnico torna-se ferramenta quando se abstrai do território e se assenta sobre a terra enquanto objeto; mas é ao mesmo tempo que o signo deixa de inscrever-se sobre o corpo, e se escreve sobre uma matéria objetiva imóvel. Para que haja trabalho, é preciso uma captura da atividade pelo aparelho de Estado, uma semiotização da atividade pela escrita. Donde a afinidade de agenciamento signos-ferramentas, signos de escrita-organização de trabalho. É inteiramente outro o caso da arma, que se encontra numa relação essencial com as joias. Já não sabemos muito bem o que são as joias, a tal ponto sofreram adaptações secundárias. Porém, algo desperta em nossa alma quando nos dizem que a ourivesaria foi a arte “bárbara”, ou a arte nômade por excelência, e quando vemos essas obras-primas de arte menor. Essas fíbulas, essas placas de ouro e de prata, essas joias concernem a pequenos objetos móveis, não só fáceis de transportar, mas que só pertencem ao objeto à medida que este se move. Essas placas constituem traços de expressão de pura velocidade, sobre objetos eles mesmos móveis e moventes. Elas não passam por uma relação forma-matéria, mas motivo-suporte, onde a terra já é tão-somente um solo, e até já nem sequer há solo algum, o suporte sendo tão móvel quanto o motivo. Elas dão às cores a velocidade da luz, avermelhando o ouro, e fazendo da prata uma luz branca. Pertencem ao arreio do cavalo, à bainha da espada, à vestimenta do guerreiro, ao punho da arma: elas decoram até aquilo que não servirá mais do que uma única vez, a ponta de uma flecha. Quaisquer que sejam o esforço e o labor que implicam, são ação livre relacionada ao puro móvel, e não-trabalho, com suas condições de gravidade, de resistência e de dispêndio. O ferreiro ambulante acresce a ourivesaria à arma e vice-versa. O ouro e o dinheiro adquirirão muitas outras funções, mas não podem ser compreendidos sem esse aporte nômade da máquina de guerra, onde não são matérias, porém traços de expressão que convém às armas (toda a mitologia da guerra não apenas subsiste no dinheiro, mas aí é fator ativo). As joias são os afectos que correspondem às armas, arrastados pelo mesmo vetor-velocidade. (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:80-1)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997 [1980]. 1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. (Trad.: Peter P. Pelbart) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 5. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.11-110.