Ferro (no concreto) em Deleuze e Guattari (1997 [1980])

Há toda uma “maquínica” biológico-comportamental, todo um engineering molecular que deve nos permitir compreender melhor a natureza dos problemas de consistência. O filósofo Eugène Dupréel havia proposto uma teoria da consolidação; ele mostrava que a vida não ia de um centro a uma exterioridade, mas de um exterior a um interior, ou antes de um conjunto vago ou discreto à sua consolidação. Ora, esta implica três coisas: que haja não um começo de onde derivaria uma sequência linear, mas densificações, intensificações, reforços, injeções, recheaduras, como outros tantos atos intercalares (“não há crescimento senão por intercalação”); em segundo lugar, e não é o contrário, é preciso que haja acomodação de intervalos, repartição de desigualdades, a tal ponto que, para consolidar, às vezes é preciso fazer um buraco; em terceiro lugar, superposição de ritmos disparatados, articulação por dentro de uma inter-ritmicidade, sem imposição de medida ou de cadência [Nota de rodapé 27: Dupréel elaborou um conjunto de noções originais: “consistência” (relacionado a “precariedade”), “consolidação”, “intervalo”, “intercalação”. Cf. Théorie de Ia consolidation, La cause et l’intervalle, La consistance et la probabilité objective, Bruxelas; Esquisse d’une philosophie des valeurs, P.U.F.; Bachelard recorre a essas noções em La dialectique de la durée.]. A consolidação não se contenta em vir depois; ela é criadora. É que o começo não começa senão entre dois, intermezzo. A consistência é precisamente a consolidação, o ato que produz o consolidado, tanto o de sucessão quanto o de coexistência, com os três fatores: intercalações, intervalos e superposições-articulações. A arquitetura testemunha isso, como arte da morada e do território: se há consolidações depois-de, há também aquelas que são partes constituintes do conjunto, do tipo chave de abóboda. Porém, mais recentemente, matérias como o concreto deram ao conjunto arquitetônico a possibilidade de se libertar dos modelos arborescentes, que procediam por pilares-árvores, vigasgalhos, abóboda-folhagem. Não só o concreto é uma matéria heterogênea cujo grau de consistência varia com os elementos de mistura, mas o ferro é nele intercalado segundo um ritmo; mais ainda: ele forma nas superfícies autoportadoras um personagem rítmico complexo, no qual as “hastes” têm secções diferentes e intervalos variáveis de acordo com a intensidade e a direção da força a ser captada (armadura e não estrutura). É neste sentido também que a obra musical ou literária tem uma arquitetura: “saturar o átomo”, dizia Virgínia Woolf; ou então, segundo Henry James, é preciso “começar longe, tão longe quanto possível” e proceder por “blocos de matéria trabalhada”. Não se trata mais de impor uma forma a uma matéria, mas de elaborar um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada vez mais intensas. O que torna o material cada vez mais rico é aquilo que faz com que heterogêneos mantenham-se juntos sem deixar de ser heterogêneos; o que assim os mantém, são osciladores, sintetizadores intercalares de duas cabeças pelo menos; analisadores de intervalos; sincronizadores de ritmos (a palavra “sincronizador” é ambígua, pois estes sincronizadores moleculares não procedem por medida igualizante ou homogeneizante, e operam de dentro, entre dois ritmos). Não seria a consolidação o nome terrestre da consistência? O agenciamento territorial é um consolidado de meio, um consolidado de espaço-tempo, de coexistência e de sucessão. O ritornelo opera com os três fatores. (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:140-1)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997 [1980]. 1837 – Acerca do ritornelo. (Trad.: Suely Rolnik) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 4. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.115-70.