Ferro em Deleuze e Guattari (1997 [1980])

Por exemplo: não imitar o cão, mas compor seu organismo com outra coisa, de tal modo que se faça sair, do conjunto assim composto, partículas que serão caninas em função da relação de movimento e repouso, ou da vizinhança molecular nas quais elas entram. Evidentemente, essa outra coisa pode ser muito variada, e depender mais ou menos diretamente do animal em questão: pode ser o alimento natural do animal (a terra e o verme), pode ser suas relações exteriores com outros animais (tornar-se cachorro com gatos, tornar-se macaco com um cavalo), pode ser um aparelho ou prótese que o homem lhe impõe (focinheira, rédeas, etc)., pode ser algo que não tenha mais nem mesmo relação “localizável” com o animal considerado. Para este último caso, vimos como Slepian funda sua tentativa de devir-cachorro na ideia de calçar sapatos em suas mãos, amarrá-los com sua boca-cara. Philippe Gavi cita as performances de Lolito, comedor de garrafas, louças e porcelanas, de ferro, e até de bicicletas, que declara: “Considero-me metade bicho, metade homem. Mais bicho talvez do que homem. Adoro os bichos, os cachorros sobretudo, sinto-me ligado a eles. Minha dentição adaptou-se; de fato, quando não como vidro ou ferro, meu maxilar me dá coceira como o de um cachorrinho com vontade de ficar mordiscando um osso” [Nota de rodapé 45: Philippe Gavi, “Les philosophes du fantastique”, em Libération, 31 de março de 1977. Para os casos precedentes, seria preciso conseguir compreender certos comportamentos ditos neuróticos em função dos devires-animais, ao invés de remeter os devires-animais a uma interpretação psicanalítica desses comportamentos. Nós o vimos no caso do masoquismo (e Lolito explica que a origem de suas proezas está em certas experiências masoquistas; um belo texto de Christian Maurel conjuga um devir-macaco e um devir-cavalo num casal masoquista). Seria preciso considerar também a anorexia do ponto de vista do devir-animal.]. Interpretar a palavra “como” à maneira de uma metáfora, ou propor uma analogia estrutural de relações (homem-ferro = cachorro-osso), é não compreender nada do devir. A palavra “como” faz parte dessas palavras que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento em que as remetemos a hecceidades, a partir do momento em que fazemos delas expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes. Pode ser que um cachorro exercite seu maxilar no ferro, mas então ele exercita seu maxilar como órgão molar. Quando Lolito come ferro, é inteiramente diferente: ele compõe seu maxilar com o ferro de modo que ele próprio se torne um maxilar de cachorro-molecular. O ator De Niro, numa sequência de filme, anda “como” um caranguejo; mas não se trata, ele diz, de imitar o caranguejo; trata-se de compor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver com o caranguejo [Nota de rodapé 46: Cf. Newsweek, 16 de maio de 1977, p. 57.]. E é isso o essencial para nós: ninguém devém-animal a não ser que, através de meios e de elementos quaisquer, emita corpúsculos que entrem na relação de movimento e repouso das partículas animais, ou, o que dá no mesmo, na zona de vizinhança da molécula animal. Ninguém se torna animal senão molecular. Ninguém se torna cachorro molar latindo, mas, ao latir, se isso é feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-se um cachorro molecular. O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se mudasse de espécie molar; mas o vampiro e o lobisomem são devires do homem, isto é, vizinhanças entre moléculas compostas, relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, entre partículas emitidas. É claro que há lobisomens, vampiros, dizê-mo-lo de todo coração, mas não procure aí a semelhança ou a analogia com o animal, pois trata-se do devir-animal em ato, trata-se da produção do animal molecular (enquanto que o animal “real” é tomado em sua forma e sua subjetividade molares). É em nós que o animal mostra os dentes como o rato de Hoffmanstahl, ou a flor, suas pétalas, mas é por emissão corpuscular, por vizinhança molecular, e não por imitação de um sujeito, nem proporcionalidade de forma. Albertine pode imitar uma flor o quanto quiser, mas é quando ela dorme, e compõe-se com as partículas do sono, que sua pinta e o grão de sua pele entram numa relação de repouso e movimento que a coloca na zona de um vegetal molecular: devir-planta de Albertine. E é quando está prisioneira que ela emite as partículas de um pássaro. E é quando foge, quando se lança em sua linha de fuga, que ela se torna cavalo, mesmo que seja o cavalo da morte. (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:65-7)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997 [1980]. 1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. (Trad.: Suely Rolnik) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 4. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.11-113.