
Rastros de Benjamin
HABITAR
Habitar significa deixar rastros. No intérieur esses rastros são acentuados. Inventam-se colchas e protetores, caixas e estojos em profusão, nos quais se imprimem os rastros dos objetos de uso mais cotidiano. Também os rastros do morador ficam impressos no intérieur. Surge a história de detetive que investiga esses rastros. A Filosofia do Mobiliário, assim como suas novelas de detetive, apontam Poe como o primeiro fisiognomonista do intérieur. Os criminosos dos primeiros romances policiais não são gentlemen nem apaches, e sim pessoas privadas pertencentes à burguesia. (Benjamin 2009:46)
COMPENSAÇÃO INTERIOR
O interior não é apenas o universo do homem privado, é também seu estojo. Desde Luís Filipe, encontra-se no burguês esta tendência de indenizar-se da ausência de rastros da vida privada na grande cidade. Essa compensação, ele tenta encontrá-la entre as quatro paredes de seu apartamento. Tudo se passa como se fosse uma questão de honra não deixar se perderem os rastros de seus objetos de uso e de seus acessórios. Infatigável, preserva as impressões de uma multidão de objetos; para seus chinelos e seus relógios, seus talheres e seus guarda-chuvas, imagina capas e estojos. Tem uma clara preferência pelo veludo e a pelúcia que conservam a marca de todo contato. No estilo do Segundo Império, o apartamento torna-se uma espécie de habitáculo. Os vestígios de seu habitante moldam-se no intérieur. Daí nasce o romance policial que pesquisa esses vestígios e segue essas pistas. A Filosofia da Mobília e os “romances policiais” de Edgar Poe fazem dele o primeiro fisiognomonista do interior. Os criminosos, nas primeiras narrativas policiais (The Black Cat, The Tell-Tale Heart, William Wilson), não são nem cavalheiros nem marginais, e sim pessoas privadas pertencentes à burguesia. (Benjamin 2009:59-60)
PELÚCIA
Pelúcia – a matéria na qual se imprimem mais facilmente os rastros. (Benjamin 2009:257)
RASTRO E AURA
Rastro e aura. O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós. (Benjamin 2009:490)
CAÇA E EXPERIÊNCIA
Com o rastro, a “vivência” adquire uma nova dimensão. Ela não é mais obrigada a esperar pela “aventura”; aquele que vivência pode seguir o rastro que o conduz até ela. Quem segue um rastro não apenas deve estar atento; ele precisa, principalmente, já ter prestado muita atenção em tudo. (O caçador precisa conhecer a marca da pata do animal que está rastreando; precisa conhecer a hora em que o animal vai beber água; precisa saber qual é o curso do rio para onde se dirige sua presa, e onde fica a parte rasa pela qual ele mesmo pode atravessá-lo.) Manifesta-se deste modo a maneira específica na qual a experiência aparece traduzida para a linguagem da vivência. As experiências podem, de fato, ser inestimáveis para quem persegue um rastro. Trata-se, porém, de experiências de um tipo particular. A caça é a única forma de trabalho em que elas são intrinsecamente úteis. E a caça é uma forma de trabalho muito primitiva. As experiências de quem persegue um rastro provêm só muito remotamente de uma atividade de trabalho, ou são totalmente desvinculadas dele. (Não é à toa que sc fala de “caça à fortuna”.) Elas não possuem nem seqüência, nem sistema. São um produto do acaso e carregam em si a marca do essencialmente inacabável, que caracteriza as obrigações preferidas do ocioso. O acúmulo fundamentalmente interminável de tudo que é digno de ser conhecido, cuja utilidade depende do acaso, tem o seu protótipo no estudo. (Benjamin 2009:841)
BENJAMIN, Walter. 2009. Passagens. (Trads.: Irene Aron; Cleonice P.B. Mourão) Belo Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.